A Oradora: - A imprensa portuguesa, de um modo geral, tem-se mostrado bem consciente da gravidade da missão que lhe incumbe nesta hora.

Mas no domínio dos meios áudio-visuais parece-me que temos ainda um sério esforço a realizar. Esse esforço, é certo, está simplificado pelo papel que o Estado neles desempenha; por isso, no sector da rádio, da televisão e, até certo ponto, do cinema, o trabalho que se impõe não me parece ser tanto de sinal negativo -impedir desvios de doutrina ou infiltrações de cepticismo desmoralizador como de sinal positivo: apresentar factos, esclarecer posições, estimular entusiasmos e boas vontades.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A Oradora: - O homem preguiçoso e desatento do café e da bola, do passeio de automóvel dominical pelos arredores das cidades, o português recém-desperto para as conquistas do bem-estar material, é uma presa fácil do boato, da desconfiança, dos hedonismos de sinal contrário, mas de fundo materialista comum, que circulam sob todas as formas atraentes.

Vozes: -Muito bem!

A Oradora: - Ora, falar-lhe a linguagem heróica do sacrifício e da renúncia, evocar para ele os grandes vultos e as grandes datas da história - é correr o risco de o deixar indiferente ou até indisposto contra aquilo mesmo que desejaríamos levá-lo a amar.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

A Oradora: - Estes homens e mulheres simples, honestos, mas calculistas, ordeiros, mas maldizentes, sensíveis à magia das frases sonoras, mas sempre desconfiados da sinceridade e coerência de quem as profere, esta gente sem grandes ideais, corajosa no apego quase inconsciente a um património onde o material e o espiritual se confundem, mas prosaicamente realista e desenganada na sua visão dos homens e da vida - esta gente, não pode ser tratada com arengas de circunstância, nem com quadros históricos de compêndio.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

A Oradora: - No café em penumbra, apinhado de gente suspensa do rectângulo iluminado da televisão, o grave e conspícuo orador que aparecesse, quase estático, a ler interminavelmente uma exortação patriótica ou um lírico elogio das belezas de Portugal seria o fastidioso intruso a quem se voltam as costas e cuja voz se perde no rumor das conversas logo reatadas.

Precisamos de deixar o ensaio doutrinário, os versos da «Mensagem», a evocação de Albuquerque e Mouzinho, a solene proclamação de princípios, para públicos mais restritos e especializados: ...

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - ... para os militares que sentem, com a experiência do seu coração e da sua carne, o valor desses bens inestimáveis; para intelectuais e artistas, capazes de construir sobre a materialidade da existência o maravilhoso edifício da cultura humana; para jovens, talvez, mas para os jovens ávidos de aventura e de grandeza, receptivos e desprevenidos, ainda não contaminados, generosos e inteiros no seu amor às belas causas.

Vozes: -Muito bem, muito bem!

A Oradora: - Os outros, a massa indiferente e atarefada das ruas e dos cafés - exige outra coisa: exige factos.

Em primeiro lugar não podemos pedir-lhes sacrifícios de que não damos o exemplo. Além de ser imoral, seria mais do que inútil, contraproducente. Negar um benefício de previdência, atrasar uma reforma assistencial, descurar qualquer aspecto importante da administração pública - a pretexto da guerra de África e manter ao mesmo tempo um luxo inútil nos serviços, ou um lucro imoderado nas empresas - seria, no plano da formação das consciências, o mais inábil e escandaloso dos erros que se poderiam cometer.

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - Seria fornecer alimento e dar justificação a todas as tendências depressivas e demolidoras que fermentam na consciência colectiva.

Toda a obra de doutrinação ao nível das multidões começa- por aí, pelo exemplo vindo de cima. Exemplo, sobretudo, de austeridade, de disciplina, de espírito de justiça, de desembaraçada e pronta actividade na resolução dos casos de interesse público.

Perdoe-se-me a simplicidade quotidiana de alguns exemplos, mas parece-me que eles são úteis e pertinentes.

Quando vejo, em certos serviços de assistência médica, os doentes esperarem longas horas, às vezes sentados pelos degraus, até serem chamados com sobranceira rudeza para a rápida consulta em série; quando nos nossos liceus me acontece presenciar o caótico e vertiginoso sistema de apreciação dos examinandos, ...

Vozes: - Muito bem!

A Oradora: - ... imposto, é certo, por razões difíceis de sanar, mas nem por isso menos lamentável; quando sou espectadora participante na quotidiana tragédia sem glória dos transportes suburbanos, onde campeia a indisciplina e o desrespeito pelo público e que assumem aspectos particularmente revoltantes nessa malfadada linha de Sintra, onde vivo; quando para obter uma licença camarária, uma declaração das finanças, um simples certificado escolar para efeitos de abono de família, vejo os interessados esgotarem o tempo e a paciência, e às vezes perderem as oportunidades, no moroso e irresponsável «jogo de empurra» dos serviços; ...

Vozes: -Muito bem, muito bem!

A Oradora: - ... quando me é dado avaliar de perto certas arbitrárias distribuições de verbas, que não faltam para automóveis de luxo e sumptuosos gabinetes, mas escasseiam para pequenos benefícios úteis a todos; quando sou testemunha dos condenáveis casos de injustiça que vêm agravar a já difícil situação do funcionalismo público, sobrepondo o favor ao mérito e erigindo o compadrio em preferência semilegal na admissão aos lugares ou no almejado acesso nos escalões superiores; ...

Vozes: - Muito bem!