Não acredito que a Administração se queira erguer, então, no seu pedestal de virtudes, embora relapsa e impenitente de seus erros, para usar a linguagem do Tribunal da Santa Inquisição.

O parecer acusa um rendimento decrescente da agricultura, põe em relevo a gravidade do mal, arrisca um diagnóstico e preconiza um remédio.

A temática da minha intervenção neste debate das Contas vai desenvolver-se em redor dessa situação patológica e há-de incidir sobre aspectos particulares da vida económica e administrativa do meu círculo, confirmando o diagnóstico feito e medindo o alcance do tratamento proposto.

Talvez haja gente de mais a imiscuir-se, nos problemas da terra e organização e técnica a menos.

A receita traz o rótulo das epístolas de Horácio:

Paupertas impulit audax.

Efectivamente, a pobreza da agricultura está a necessitar de audácia, de muita audácia.

Gente de mais a imiscuir-se nos problemas da terra e a imiscuir-se primeiro para a vexar de impostos, para a carregar de gravames, para a tutelar, para a desconsiderar e, finalmente, para a desiludir de uma protecção que a não protege ou para a amparar de conselhos que a não servem.

O pecado não é de hoje.

Relendo velhos e bons discursos políticos encontrei uma página que, mais de trezentos anos passados, não perdeu nem actualidade, nem frescura, nem grandeza.

Tem a perfumada doçura das coisas antigas e a serenidade própria daqueles que se encontram fadados para contemplar, paralelamente, as coisas de Deus e dos homens.

Criando Deus o primeiro homem, encarregou-o de cultivar e guardar o Paraíso e deu-lhe com este preceito toda a inteligência para o exercício da agricultura.

E deve-se ponderar que só ele foi instituído no estado de inocência, pois todas as outras artes e ofícios o foram depois da queda.

Quando ponho os olhos na miséria e abatimento, no desprezo e na pobreza a que chegou este tão importante estado, atribuo parte de tão grande dano a que a maioria dos gravames impostos recai sobre os fracos ombros deste afligido grémio, contra quem se aparam sempre as cavilosas penas dos escrivães, se afiam as espadas dos soldados e se encaminham as prejudiciais quimeras dos arbitristas.

Voltarei ao discurso chamado dos lavradores, mas, entretanto, fico-me na consideração do estado de inocência em que foi instituído o exercício da agricultura e na sua pobreza e abatimento.

"Miserável estado - dizia Cícero -, que vive sempre com trabalhos certos e esperanças incertas."

Mas, estado de inocência, digo eu, em que só podem ganhar os que já fizeram da agricultura um comércio por grosso e se estabeleceram muito depois da queda.

Acusada a agricultura de não enriquecer suficientemente a Nação, aumentando o produto nacional, é preciso averiguar, realmente, das suas culpas e das suas queixas.

Os lavradores de Trás-os-Montes têm um carácter muito bem definido, apurado em séculos de convívio comunitário.

Possuídos de uma forte personalidade e natural independência, a pobreza nunca os diminuiu, antes exaltou a sua sobriedade, tenacidade e inteligência.

O meu velho caseiro o Chico António - instruía-me, na eira de Santo Amaro, nessa admirável filosofia:

Compadre, se nós, os pobres, fôssemos tão estúpidos como os ricos, morríamos todos de fome.

... E talvez não morressem, porque ali não tem faltado uma malga de caldo para um pobre.

Refere Oliveira Martins que, naquelas terras, "vigoravam com a maior energia as tradições primitivas da propriedade comunal e os aforamentos faziam-se com um certo povo que repartia entre si os encargos, como entre os Romanos na Cúria municipal, ou entre os Russos no Mir, e como entre nós depois se repartiu a sisa".

Esta vida comunitária, este governo próprio, deu-lhe uma autonomia que tem expressão na legendária independência das gentes e assegurou-lhe uma alta politização que é marca transparente da sua personalidade.

Lavradores sóbrios, tenazes e independentes, sairiam facilmente da sua pobreza se lhes fossem assegurados os meios de que têm necessidade.

Nunca lhes faltou vontade nem audácia. Não teme sacrifícios um povo que é capaz de emigrar logo que se abre uma perspectiva de melhoria das suas condições, que se adapta aos trabalhos mais rudes e costuma lutar, ainda que a luta seja dura e incerta, para vencer os homens ou a Natureza, as ribas agrestes do Douro ou as hostes napoleónicas.

O crescimento da agricultura de Trás-os-Montes depende das medidas concretas da Administração.

Aquela região oferece possibilidades imensas de fomento florestal, frutícola e pecuário e recursos naturais para uma grande variedade cultural.

A terra fria e a terra quente, com os microclimas que por ali se podem delimitar, permitem considerar uma extensa gama de produções que assegura um relativo conforto contra as crises do tempo e dos mercados.

A terra e o homem guardam, portanto, uma grande promessa.

Se não cresce a agricultura, repito, é porque lhe tem faltado o Governo.

A política das obras públicas, lenta, desactualizada e cheia de vertigens, não tem sido dirigida ao rápido crescimento económico; os impostos não favorecem o campo; as comunicações são difíceis, os transportes são uma calamidade pública; o crédito agrícola é praticamente inexistente e a própria política dos preços tem sido inoperante.

Os meios clássicos do arranque de uma região debilitada - redução da carga tributária, energia barata, crédito orientado, transportes eficientes e baratos, preços garantidos - estão ausentes do processo de crescimento de Trás-os-Montes.

Ausentes esses meios e presentes os que têm sinal contrário - impostos e taxas excessivas, energia proibitiva, transportes caríssimos,- crédito inoperante, preços marginais degradados.

As populações agrícolas desamparadas, lamentavelmente desamparadas, prosseguem a sua pobre economia de subsistência, acantonadas nas aldeias, entregues à consciência dos pequenos comerciantes locais, sem incentivo para produzir.

Essa situação, verdadeiramente angustiosa, conduziu, logicamente, à emigração maciça.

A economia desmaia, a autoridade dos vizinhos, que o velho funcionamento dos conselhos assegurava, foi dês-