Depois, pode asseverar se que o princípio romanista, conquanto limitado em certos períodos, tem a seu favor uma longa tradição entre nós.

Nos primeiros séculos da nacionalidade, a caça não era praticada igualmente por todas as classes, uma vez que OS reis e também alguns grandes senhores reservavam para si o privilégio da caça em várias terras ou regiões, sobretudo da caça grossa, pois a caça miúda era geralmente livre.

Mas as reclamações do povo fizeram-se sentir frequentemente nas cortes, quer em razão dos danos que os animais causavam nas suas culturas, quer em razão dos abusos cometidos pelos monteiros, quer porque consideravam a caça como «coisa comum e não estava portanto no senhorio de coisa alguma».

As reclamações do concelho de Lisboa, nas cortes aqui reunidas em 1439, respondeu o monarca:

Praz-nos descontar os porcos e cervos, e deixamos as perdizes para relevamento de nossos cuidados e enfadamentos (13).

Poderíamos citar outros exemplos como prova da reacção popular e da consciência dos povos quanto ao direito que se arrogavam sobre a caça(19). Mas apenas citaremos as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes de 1821, que fizeram votar e publicar o Decreto de Fevereiro do mesmo ano pelo qual D. João VI determinou que fossem devassadas e abolidas todas as coutadas em aberto, extinguindo, anos depois, os cargos de monteiro-mor do reino, monteiros-mores e menores, caudeis e todos os demais que constituíam a burocracia venatória da época inerente a coutos de caça(20).

E não muitos anos depois surge o Código Civil de 1867.

E não se ignora que ele proclamou por forma inequívoca o princípio romanista da caça como res nullius.

«E lícito a qualquer apropriar-se, pela ocupação, dos animais e outras coisas que nunca tiveram dono ...» - diz o artigo 383.º

«E lícito a todos, sem distinção de pessoas, dar caça aos animais bravios...» - diz o artigo 384.º

E todas as leis posteriores sobre caça, desde a Lei n.º 15, de 7 de Julho de 1913, até ao vigente Código da Caça de 1934 (21), observaram aquele princípio.

Já lá vai um século praticamente, e, se mais não houvesse, como efectivamente há e foi assinalado, o facto só por si bastaria para integrar uma tradição.

Por outro lado, o projecto definitivo do novo Código Civil, já publicado, ao tratar da ocupação (secção II do capítulo II), diz, no artigo 1319.º:

Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono ...

E no artigo seguinte 1319.º -, que tem por epígrafe

«Caça e pesca», lê-se:

A ocupação dos animais bravios que se encontram no seu estado de liberdade natural é regulada por legislação especial.

Ora daqui parece dever extrair-se a conclusão de que também o novo Código Civil se mostra fiel ao princípio romanista, tanto mais que em ponto algum inclui a caça entre os poderes de fruição contidos no direito de propriedade.

Mas é também fora de dúvida que o princípio romanista, aplicado em toda a sua plenitude, levaria à extinção da fauna cinegética.

À inteira liberdade de caçar, em face de uma legião de caçadores que aumenta progressivamente e de uma área com condições de vida para a caça cada vez mais reduzida, equivaleria à destruição total das espécies dentro de poucos anos.

Isto significa que também a concepção da caça como res nullius não serve nem pode ser aplicada em toda a sua pureza.

Chegamos, assim, à conclusão de que nenhum dos sistemas em presença contém em si a virtualidade de solucionar convenientemente o problema venatório se não lhes introduzirmos desvios e correcções.

Mas se assim é, se temos de eleger um deles, porque na realidade não dispomos de outros, então parece que estará indicado dar preferência ao sistema tradicional (22).

E pensa-se que ele poderá conduzir a resultados satisfatórios se houver a decisão necessária para o corrigir de harmonia com as realidades dos tempos de hoje.

Esta correcção consistirá, sobretudo, além da delimitação de locais em que é proibido caçar, no estabelecimento de um sistema de reservas de caça suficientemente amplo e equilibrado, que não tolha em medida incomportável os direitos dos caçadores de limitado poder económico, mas que seja meio eficaz de protecção e desenvolvimento das espécies, em primeiro lugar, que proporcione depois uma maior rendabilidade das terras, especialmente daquelas que não têm ou têm reduzida aptidão para a exploração agrícola ou florestal, e que satisfaça finalmente as necessidades de um turismo rico e exigente, como é o turismo venatório.

Eis o caminho que se nos afigura mais prudente e aconselhável.

Evitar-se-á deste modo a transição brusca de um sistema para outro, através de uma revolução jurídica que não deixaria de ter os seus graves reflexos de ordem social (23).

(18) Cf. Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal, 2.ª edição, vol. III, 33.

(20) Já anteriormente o Regimento de 21 de Março de 1800 manteve sómente as coutadas reais, descontando todos os restantes terrenos e restabelecendo a liberdade de caçar para toda a gente. (Cf. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. III, 170).

(22) Além de Portugal costuma apontar-se, na Europa, sómente a Itália como seguindo este sistema. Parece, todavia, que a Espanha também o segue, embora com mais limitações em favor dos proprietários, como atrás se disse. Segue-o igualmente o Brasil e algumas outras nações da América do Sul. O sistema germânico nem sempre se mostra eficaz. Assim, em França, onde Ia plus grande partie du territoire français est un désert cynégétique (citado rapport do Senado francês sobre o projecto de lei relativo & organização das associações comunais e intercomunais de caça, p. 8).

(23) Terão cabimento aqui, em certa medida e com as devidas adaptações, as considerações feitas no já aludido parecer da Câmara Corporativa sobre o arrendamento da propriedade rústica (p. 361):

É preciso não esquecer que a ciência do direito não é simplesmente uma ciência de conceitos e de abstracções - a doutrina jurídica -, nem simplesmente uma arte de interpretar as leis. O direito é também um ramo de sócio-