humilde pessoa, que rasgadamente o louvou, e agora volta a louvar, mas a história de tempos recentes, não mais de três anos a esta parte.

Em 4 de Janeiro desse mesmo ano de 1965, a mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto elegeu o seu provedor. Decorridos seis meses, deu escusa do cargo no provedor eleito. As circunstâncias da escusa, por anómalas, provocaram um inquérito, e nele foi lançado um despacho do Sr. Ministro da Saúde e Assistência, no qual se declarou não haver fundamento para a intervenção tutelar do Estado, mas se reconheceu expressamente o muito interesse, competência e zelo postos pelo provedor no exercício das suas funções.

Ao provedor que se seguiu também a mesa, pouco tempo depois, deu escusa do cargo. Mais tarde, instaurou-se novo inquérito, e por nota publicada nos jornais diários de 16 do corrente ficou a saber-se que o Ministério da Saúde e Assistência, invocando o condicionalismo referido nos n.ºs 1.°, 3.° e 4.° do artigo 429.° do Código Administrativo, dissolvera a mesa da Misericórdia, já então com um quarto provedor, e, nos termos do artigo 430.º do aludido Código, nomeara uma comissão administrativa presidida por um antigo membro do Governo e presidente da Câmara Municipal do Porto, individualidade de elevado prestígio, e composta por mais nove pessoas da maior respeitabilidade social, todas elas irmãos da Santa Casa.

Logo a seguir, a comissão administrativa investiu no cargo de director clínico do Hospital Geral de Santo António o antigo provedor Dr. Domingos Braga da Cruz.

Era inevitável, Sr. Presidente, que à volta da intervenção do Governo se gerasse uma perturbadora confusão.

Não faltou, ainda durante o decurso do inquérito, quem afirmasse e fizesse correr que o acto governamental representava uma intromissão ilegal na autonomia da instituição, ignorantes ou esquecidos - não direi que mandando a boa fé para férias, a frase me pertence - de que, constituindo as Misericórdias pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, o Código Administrativo estabeleceu para elas um regime jurídico que as sujeita à tutela do Estado, em conformidade com as leis, decretos, portarias, instruções e ordens emanadas do Governo.

O Governo pode, assim, de harmonia com os termos fixados na lei, e só nesses, fazer subordinar à sua aprovação certas deliberações dos órgão dirigentes, fiscalizar as instituições através de inspecções, fixar à sua administração regras de contabilidade pública, sujeitar ao contencioso administrativo determinadas decisões e dissolver os corpos gerentes.

A tutela do Estado não modifica, todavia, a natureza do corpo colectivo, nem lhe retira a autonomia, apenas limita temporariamente os poderes da sua administração, e, conforme ensina o Prof. Marcello Caetano, "nos termos expressamente fixados na lei, isto é, somente a actos que a lei dispuser, pela forma e para os efeitos nela estabelecidos e pêlos órgãos aí designados".

A base VII da Lei n.° 2120, de 19 de Julho de 1963, que promulgou as bases da política da saúde e da assistência, é bem clara quando diz que "a autonomia das instituições particulares só poderá ser limitada pela tutela do Estado" e, ainda, que "a tutela respeitará a vontade dos instituidores, sem prejuízo da actualização técnica dos serviços e coordenação indispensável à maior eficiência das suas actividades".

Era legítimo perguntar-se da curialidade desse apelo, quando, porventura, dirigido ao Governo de um Estado assente, doutrinária e constitucionalmente, na moral e no direito, um verdadeiro Estado ético e jurídico, respeitador e fomentador da iniciativa particular.

Também eu recebi um formidável número de protestos de pessoas provenientes de muitos meios e pensamentos contra o que dissera, e, mais ainda, por se julgar saber que a decisão ministerial sobre o inquérito, já em curso há longos meses, estava prestes a ser proferida.

Por isso mesmo, cumpri um dever de lealdade dizendo nesta Assembleia, como apontamento a preceder referência ao baptismo do avião com o nome da cidade onde nasci, a cidade do Porto, as seguintes palavras, que peço licença para repetir exactamente como foram proferidas, constam do texto enviado para o Diário das Sessões e o conceituado diário O Comércio do Porto transcreveu na sua reportagem dos trabalhos parlamentares:

Com à lealdade que lhe devo, quero dizer ao ilustre Deputado, em simples apontamento, da minha surpresa de o ver entrar, dispondo de uma qualidade política que justamente lhe pertence, na apreciação de doutrina, certa na essência, mas errada na oportunidade, por mais parecer aos olhos de tantos, nanja por mim que conheço a sua inteligência e o seu carácter, perturbadora da livre decisão que ao Estado pertence constitucionalmente, e só a ele, como entidade tutelar, e não ladrão de estrada, em questão pendente entre irmãos desavindos sobre interesse de ordem pública. E, para não incorrer na mesma crítica, por aqui me fico, até ver.

Vê-se, na verdade, que não era possível deixar de voltar ao assunto, mas disso não me cabem responsabilidades, e já sem receio da justeza da aludida crítica.

Tenho sincera pena de que aquelas simples e, ao que julguei, claras palavras fossem consideradas inadequadas e injustas, e inadequada e injustamente se fizessem considerações que me forçaram a falar do acontecimento que mais valeria esquecer, salvo se, recordá-lo, puder contribuir para uma tomada de consciência de quantos dele foram responsáveis.

Não vou mais longe. Foram-me dadas explicações, que não pedi, nem desejava, atribuindo-se o que dissera a textos não emendados e sujeitos a más interpretações.

Nunca entendi as palavras contidas nos mesmos textos como dirigidas a minha pessoa, muito embora o meu nome nelas figure por cinco vezes.

Acontece as palavras atraiçoarem, por vezes, o pensamento de quem as profere, ou também permitirem efeitos cujas consequências se não prevêem, por opostos àqueles que delas se pretendia tirar.

Posto isto, quero afirmar que também excluo do que disse e acabo de dizer qualquer intuito de polémica, na qual da mesma forma não me sentiria embaraçado, mas por duas razões fundamentais:

A primeira, é que o Regimento, para dignidade desta Assembleia, não permite o uso da palavra para qualquer espécie de intervenção classificada de polémica, nem admite polémicas de qualquer espécie, mas sim debates, na ordem do dia.