cializado» para outro ramo de especialização ou para tribunal não especializado, corre-se o risco real de desactualização de conhecimentos e de inconvenientes inclinações de personalidade.

Nos primeiros passos ao encontro da especialização que caracterizam a nossa actual organização judiciaria, é já o que pode suceder com os juizes dos tribunais cíveis de Lisboa e Porto chamados, pela promoção, a julgar causas criminais e, inversamente, o que também sucede com os juizes dos tribunais criminais das mesmas comarcas chamados, pela promoção, a julgar na Relação causas cíveis.

O mesmo ocorre com os juizes que servem nos tribunais de menores, nos tribunais de família, nos tribunais de execução das penas, etc.. E sucederá também com os juizes das secções cíveis ou criminais das Relações se, quando se verificar a promoção ao Supremo Tribunal de Justiça, não tiverem vaga, respectivamente, nas secções cíveis ou na secção criminal.

A aceitação integral do princípio da especialização exige coerentemente a estruturação de carreiras profissionais nos diversos e mais destacados ramos do direito, pelo menos após certo grau da escala. De contrário, a manter-se o saltitar de um ramo para outro, ao sabor das transferências ou das promoções, não poderá chegar a saber-se se resulta maior o benefício ou o prejuízo do sistema.

A verdade é que o princípio da especialização está já em execução e parece irreversível.

Não poderá, alias justificadamente pensar-se na estruturação de carreiras profissionais diversificadas por ramos de direito sem tribunais ou secções correspondentemente especializados.

Fomentando um passo em frente na orgânica das Relações, encaminhando para a especialização, criar-se-á mais um elo na rede indispensável.

Essa rede, quando totalmente tecida, aconselhará, de certo, a ponderar soluções para adaptar-lhe carreiras profissionais especializadas. Mas não podiam estas, logicamente, ser-lhe posterio res, nem tinham necessariamente de ser simultâneas.

Em França, por exemplo, continuam a verificar-se estreitos laços entre as jurisdições cíveis («judiciaires») e penais, com magistrados de um quadro único. (8)

Em alguma medida poderá o Conselho Superior Judiciário providenciar no sentido de minimizar os inconvenientes da diversidade de jurisdições com unidade de quadro, por adequada escolha dos magistrados para os diversos cargos.

O que menos se compreenderá é que, existindo já tribunais especializados no civil e no criminal, ao nível da l.ª instância nas duas primeiras comarcas do País, com correspondência em idêntica divisão no Supremo Tribunal de Justiça, as Relações constituam um hiato, o espaço branco em que a mescla se mantém. Não é dos tempos presentes a tendência separatista entre a jurisdição cível e a jurisdição criminal. Pelo contrário, essa separação é, a certos níveis, uma tradição da nossa orgânica judiciária.

Na Novíssima Reforma Judiciária estabelecia-se que na comarca de Lisboa haveria seis juizes da l.ª instância civil e três juizes da l.ª instância criminal,

enquanto na comarca do Porto haveria três juizes da l.ª instância civil e um juiz de direito de l.ª instância criminal (§§ l.º e 2.º do artigo l.º).

Sempre praticamente essa divisão se manteve nas principais comarcas, e mais vincada ficou com o Decreto-Lei n.º 35 044, de 20 de Outubro de 1945, que promulgou a reorganização dos tribunais ordinários.

Tradicional foi também, durante muitos anos, a divisão tripartida, entre jurisdição cível, jurisdição comercial e jurisdição criminal.

A jurisdição comercial, como subespécie da jurisdição cível, foi criada por Ferreira Borges, em 1833, e teve a sua maior consagração com a Novíssima Reforma Judiciaria, que criou uma Relação Comercial, para conhecimento em 2.ª instância das causas comerciais e de presas, ou que tivessem origem em presas feitas por embarcações de guerra, ou por armadores portugueses e ainda de certas questões ultramarinas (as indicadas no artigo 104.º), como dispôs o artigo 78.º.

Esta Relação Comercial veio a ser extinta por Decreto de 23 de Junho de 1870, que transferiu as respectivas atribuições para as Relações civis, mas a existência dos tribunais de comércio continuou por largos anos, em Lisboa, Porto e nalgumas outras comarcas, pondo-lhes termo o Decreto n.º 21694, de 29 de Setembro de 1932.

«Essa extinção não era reclamada nem aconselhada era e antes se justificava com o princípio da especialização», comentou Barbosa de Magalhães.(8)

O relatório do Decreto n.º 21 694, porém, justificou-a largamente, invocando razões de orgânica dos então existentes tribunais do comércio, e tam bém por negação de qualquer quid específico que realmente explique a diferenciação da jurisdição cível. Escreveu-se:

Os tribunais do comércio entre nós não podem justificar-se com qualquer razão derivada da especialização, mesmo supondo esta necessária, porque a sua organização é exactamente a mesma que a dos tribunais comuns. Também não justifica a sua existência a necessidade de um sentimento próprio da aplicação da lei comercial.

Esta ordem de razões é presentemente bem mais discutível do que no tempo em que foram produzidas. Os argumentos então formulados não consideraram a complexidade sempre crescente do direito, nos diversos ramos.

O que, porém, mais importa referir é que, não obstante o pendor que então, na época do Decreto n.º 21 694, se verificava contra a especialização de jurisdições, não foi posta em causa a diferenciação, nas principais comarcas, entre a jurisdição cível e a jurisdição criminal. No presente, não teria sequer bom fundamento a alusão, feita no relatório do mesmo diploma, a uma tendência unificadora verificada nos países estrangeiros.

O caso da França é talvez o mais elucidativo da tendência moderna.

(9) Prefacio da edição do Estatuto Judiciário, que coordenou e actualizou juntamente com o advogado Dr. José de Magalhães Godinho