reconhecer, todavia, que, de uma maneira geral, não tem sido a falta da citada disciplina legal causa ou motivo de entraves ou impedimentos na expansão do referido processo, quer sob o ângulo da experimentação científica, quer na execução cirúrgica de transplantações em seres humanos.

Isto porque, como acontece no nosso país e também, por exemplo, em França, onde ainda não há legislação expressa reguladora da matéria, sempre os médicos, os juristas e os tribunais têm encontrado nos princípios gerais do direito positivo, em construções doutrinárias - com especial relevância e ênfase no consentimento do ofendido como justificação do facto-, nas normas éticas e na moral deontológica, o suporte necessário para a permissão e legitimidade das citadas intervenções cirúrgicas, com plena aceitação, como é evidente, dos próprios interessados, dos seus familiares e da sociedade em geral.

Impõe-se, todavia, aclarar o actual estado de coisas, procurando acabar com uma falt a de precisão legal cuja definição concreta só poderá trazer vantagens para a comunidade.

Daqui que, recentemente, tenham começado a surgir, no estrangeiro, normas legais reguladoras da matéria, as quais, para além do seu grande interesse teórico e prático, não deixarão ainda de contribuir para a intensificação, desenvolvimento e segurança dos trabalhos de investigação científica que continuam a efectuar-se, e sua concretização, ultrapassado o período experimental. Caracterização da proposta em análise Em problema tão difícil, complexo e controvertido, a proposta de lei apresentada pelo Governo orienta-se para a licitude, com larga permissividade, dos actos de recolha e subsequente transplantação de órgãos e tecidos de pessoas vivas, em benefício de outrem, dentro dos seguintes parâmetros fundamentais. Finalidade exclusivamente terapêutica, mas com limites impostos pela moral e bons costumes,

b) Interesse medico da intervenção legitimado pela sua absoluta necessidade e pela consideração dos riscos que correm os interessados,

c) Definição jurídica do acto como doação gratuita;

d) Fixação, para o dador, de uma idade mínima como limite da sua capacidade para autorizar a recolha e doação,

e) Necessidade do consentimento, formalmente expresso e inequívoco, do dador e do receptor;

f) Possibilidade de suprimento do consentimento de qualquer dos interessados pelos seus representantes legais, em certas formas de incapacidade de exercício de direitos,

g) Proibição de percebimento de remunerações materiais, a título de pagamento, relacionadas com a recolha e a transplantação,

h) Garantia de idoneidade técnica dos estabelecimentos hospitalares ou centros clínicos onde se realizarão as intervenções,

i) Punição rigorosa, com penas de prisão, para a violação dos preceitos estatuídos Global e genericamente considerados, como poderão ser valorados estes princípios orientadores, à face da finalidade última que se pretende atingir e dos vários e melindrosos aspectos que o problema envolve?

Por outras palavras, para uma visão compreensiva do problema, e para plena certeza e tranquilidade do nosso julgamento, impõe-se que tais princípios sejam apreciados à luz do avanço das ciências médicas, da moral, da deontologia e do nosso ordenamento jurídico, convindo também compulsar a doutrina a respeito conhecida e, bem assim, analisar sumariamente a legislação estrangeira aplicável. Principais aspectos levantados pelo problema das transplantações Técnica recente e sensacional e esta que, em aplicação de novas descobertas e conhecimentos no campo das ciências médicas, vem permitindo o tratamento, e por vezes a cura, de casos clínicos ainda há poucos anos irremediavelmente perdidos.

Os esforços, em tal domínio, estão-se orientando prioritariamente para o aperfeiçoamento e consolidação das técnicas já comprovadamente eficazes, para se aumentarem ainda mais as actuais condições de segurança, designadamente nas transplantações entre vivos de rins, corneas e nos enxertos de pele.

Mas a investigação prossegue noutros importantes campos de aplicação, sendo de realçar as tentativas que, a partir da recolha de órgãos em cadáveres, se estão fazendo, umas mais animadoras do que outras, quanto às transplantações da medula, do pâncreas, do intestino, do pulmão, do fígado e, em prenúncio de vaga salvadora para tantos, do coração e das artérias. Esta nova noção de terapêutica traz consigo dificuldades de vária ordem, para além do campo estritamente técnico-medico, advindas sobretudo do facto de ser o próprio homem que está em causa, como titular de um direito de personalidade sobre si mesmo.

Será, pois, aceitável transformar o homem em instrumento ou meio condicionante de cura, legitimando com a sua determinação o acto de ablação ou amputação de um seu órgão ou tecido, a transplantar para o corpo de um seu semelhante?

Levanta-se aqui, antes de mais, o problema da intangibilidade do corpo humano e da falta de um poder absoluto de disposição sobre ele, impeditivo do ponto de vista da lei, para a pessoa, da sua própria destruição ou deterioração física voluntária.

Levanta-se aqui, antes de mais, o aspecto ético ou moral das transplantações, apelando os que as condenam para apertadas interpretações de uma ultrapassada concepção da intangibilidade absoluta da pessoa humana. Para a compreensão do problema melhor contributo obteremos das palavras do Papa Pio XII 1, proferidas em 14 de Setembro de 1952, aos participantes num congresso de (...)patologia em que se abordam os limites do poder de disposição sobre o seu próprio

1 Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santita Pio XII XIV (Quattordicesimo anuo di Pontificato 2 Marzo 1952-1.º Marzo 1953), Vaticano pp. 322-323.