Se, em caso de recolha e transplantação de um rim, por exemplo, o interesse médico legítimo não parece facilmente discutível, não poderá ignorar-se, para tal, a vantagem ou benefício concreto a obter pelo receptor. O dador, que sofreu uma lesão irreversível ou grave, não poderá pretender senão uma compensação de ordem moral, e daqui que seja absolutamente essencial, do ponto de vista social, que o sacrifício consentido pelo dador não seja em vão.
Segundo a boa doutrina, aceita-se, pois, que a efectivação da transplantação fique dependente da observância da condição de que as probabilidades de êxito da operação, para o destinatário, ultrapassem de longe os riscos assumidos pelo dador.
É preciso não somente excluir o sacrifício da vida do dador, mas mesmo evitar uma diminuição importante da sua personalidade.
A doação de um órgão deve ser sempre expressão de solidariedade humana e de altruísmo, sendo precisamente por isso que importa limitar ao máximo os ri scos corridos pelo dador. Daqui que o médico tenha a obrigação de, sob pena de incorrer em responsabilidade penal e disciplinar, verificar sempre e cuidadosamente a aptidão física e psíquica do dador, a fim de comprovar se o seu estado geral de saúde é compatível com a operação em vista.
Notar-se-á, primeiramente, que a lei pune quem presta ajuda a alguma pessoa para se suicidar (artigo 354.º do Código Penal) e ainda aquele que intencionalmente, por mutilação, consegue tornar-se incapaz para cumprir as obrigações de serviço nas forças armadas (artigo 56.º da Lei n.º 2135, de 11 de Julho de 1968).
Estas punições parecem facilmente compreensíveis à luz da doutrina ética, já explanada anteriormente, que reprova a atitude do homem quando atentatória da sua integridade por violação da sua imagem e semelhança de Deus, portanto, violadora da exigência ontológica da realização do seu fim último.
Estranhar- se-á que, na lei penal, não seja punida a automutilação senão quando o agente se proponha tornar-se incapaz para a prestação do serviço militar.
A explicação da omissão poderá encontrar-se na hesitação do legislador, que terá reconhecido a sua dificuldade de apreciação ética directa do facto sem a consideração concreta dos fins, dos meios e das circunstâncias em que o homem, ao arrepio do seu apetite de conservação, voluntariamente se destrói.
E também porque, estando o corpo compreendido na esfera jurídica pessoal, a pessoa tem sobre ele, enquanto viva, poder de disposição, embora não absoluto.
No plano da justificação do facto ou até da directa exclusão da ilicitude, pode invocar-se que o consentimento se baseia em razões humanitárias e piedosas. Para alem disso, e já no plano de culpa, as dificuldades poderão ser superadas na moderna problemática do direito criminal pela subjectivação desse direito, construindo-o a partir do agente e da sua personalidade .
O cerne do problema reside, pois, na validade da aplicação à hipótese do instituto do consentimento do ofendido, e em que condições.
2. O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes.
3. Tem-se por consentida a lesão quando esta se der no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.
Vaz Serra 8 escreve a respeito que "desde que a responsabilidade civil se destine a tutelar interesses privados, deve ser lícito, em princípio, ao interessado renunciar a essa tutela e afastar, assim, a antijuridicidade do acto com que terceiro lese esses interesses, tal eficácia só sendo admissível quando os direitos protegidos sejam disponíveis, isto é, quando se possa renunciar à tutela legal deles.
O consentimento do lesado, ou do seu representante legal, e um negócio jurídico unilateral e deve supor a capacidade do seu autor ou o assentimento do seu representante legal".
7 Ver, por exemplo, Eduardo Correia, Direito Criminal, com a colaboração de Jorge de Figueiredo Dias, vol II, pp. 18 e segs.