extraordinária acção criadora. O nosso património jurídico tradicional, de vincado matiz escolástico-romanista, sofreu uma profunda transformação enquanto se preparava espontaneamente o campo adequado para uma síntese oficial representou-a o Código Civil de 1867.

Convém lembrar que o desejo de reforma do nosso direito privado vinha já dos começos do último quartel do século XVIII, portanto do período jusnaturalista. Avivou a preocupação, bem dúvida, o ambiente de entusiasmo codificador, do Estado liberal. Mas não devo pormenorizai aqui esses vários esforços, para cujo inêxito concorreu a instabilidade política da primeira metade do século XIX. Apenas advertirei que de tais insucessos resultou também um certo efeito positivo, efeito comparável - permita-se-me intercalar esta nota - ao que se assinala, a propósito da feitura tardia do Código Civil alemão, à fecundidade do pensamento de Savigny, que, refreando tendências codificadoras imaturas, possibilitou à ciência pandec tística a formação de tradições doutrinais de, índole nacional.

Na realidade, a forçada contenção codificadora deu tempo a que muitas importações de última hora se radicassem entre nós sem os inconvenientes das mudanças bruscas, não raro se articulando no património tradicional com apurado sentido prático, enquanto, simultaneamente, proporcionou à ciência jurídica portuguesa da época, a par do estágio e amadurecimento das soluções, aquele mínimo de apuro técnico capaz de fazer obra que fosse algo mais do que uma pura e simples cópia servil do modelo napoleónico, paradigma de todos os legisladores individualistas.

Mas nem por isso o notável Código de 1867 - do mesmo modo que as restantes codificações que seguiram o modelo francês - deixou de significar em grande parte um acto de transformação revolucionária. Digamos não se limitou a ser, à maneira tradicional, uma simples compilação ou actualização do direito existente, antes revestiu uma feição programática ao conceber e planear a estruturação da sociedade com estatuições conformes à ideologia do tempo Redigido numa altura em que o liberalismo económico e o liberalismo político tinham assentado amplos arraiais na sociedade portuguesa, o Código não foi considerado somente como um corpo de legislação civil, mas como o fulcro de todo o sistema jurídico nacional.

Cumpre reconhecer, porém, que os ideais liberalistas foram recebidos no Código, as mais das vezes, com prudente moderação, toda ela inspirada - repita-se - por um apurado sentido prático e por um grande apego à moralidade e à justiça. Aconteceu assim, principalmente, quando não se equacionaram puros interesses económicos, mas, fora ou acima deles, interesses de outra índole, sobretudo de natureza familiar. O Código reflecte, em última análise, uma tentativa do equilíbrio entre sistemas de valores que não poderiam fundir-se na sociedade portuguesa do século XIX prevalece, indubitavelmente, a imagem jurídica do liberalismo, mas ao lado desta alinham-se alguns princípios conservadores e balbucia-se mesmo um ou outro raro elemento de índole social.

Todavia, ainda não se pode reconhecer aí, nessa heterogeneidade, especialmente nessas muitíssimo esporádicas e leves gotas de «óleo social», qualquer prenúncio de uma nova transmutação nos destinos do direito privado português. No clima de justificado entusiasmo que envolveu a promulgação do Código, voz autorizada prognosticava-lhe a vigência do séculos. E «algumas das reformas posteriores (a partir de 1910) mantiveram ou prolongaram até» o seu acentuado carácter liberal e individualista.

Aquela etapa do nosso direito privado contemporâneo que havia de justificar um novo Código Civil não apresenta sinais visíveis antes de dobrado o primeiro quartel do século em curso. A observação pertence a Manuel de Andrade, ao inventariar em 1946 a recente evolução do direito privado português. Como escreveu o insigne Mestre, só por então se começa a fazer alguma coisa «no sentido de limitar aquela feição típica do nosso direito civil, comunicando-lhe um certo matiz social», ao modo do que ia acontecendo na evolução legislativa privatista dos outros países de civilização europeia. As linhas de rumo que Andrade diagnostica podem resumir-se da seguinte forma um propósito de fortalecimento da instituição familiar, e um propósito de conferir um posto de relevo à preocupação social, particularmente na protecção dispensada ao trabalho e na organização da disciplina da propriedade. E de todos sabido que essa evolução não estancou, e que prosseguiu dentro da concepção orgânica que informa a actual sociedade portuguesa.

Sem dúvida, as tendências do novíssimo direito privado enraízam, antes de tudo, na mudança de concepções e de estruturas económico-sociais que resultou da crise do liberalismo clássico, como se apresentam bem diversos dos anteriores os pólos de gravitação das mais autênticas aspirações indivi português - da doutrina social cristã, que propõe a consecução do bem individual através da coordenação deste com os interesses da sociedade Ao mesmo tempo que o próprio Estado procurava também por si aumentar os poderes e impor-se ao individualismo neutralizador da sua acção.

Com tais transformações que se têm operado no âmbito do direito privado coincidem muito naturalmente viragens da ciência que o cultiva e do pensamento filosófico-jurídico. Entraram na ordem do dia expressões como a de si «renascimento do direito natural» e a de «retorno à justiça material» O renovado direito natural católico, o neokantismo e suas correntes concomitantes, o neo-hegelianismo ou a fenomenologia vêm sendo todos eles, por essa Europa adiante, caminhos diversos de superação das perspectivas positivistas - sem embargo dos enormes serviços que a escola positiva, a seu turno, prestou à ciência jurídica.

Os tópicos que mal me limitei a alinhar mostrarão que os códigos individualistas encerraram a missão que lhes competia e que tendem a constituir em nossos dias apenas relíquias veneráveis. Destino impiedoso a que não escapa o mais representativo de todos - o Código Napoleónico George Ripert denuncia o facto de não terem sido festejados os seus cento e cinquenta anos «Em 1904 -escreve Ripert - o centenário do Código Civil foi celebrado com