Apreciação na generalidade

§ 1.º O problema em cansa O projecto de lei em apreciação, subscrito por três Srs Deputados+1, tem em vista introduzir no nosso direito processual criminal comum a proibição da reformatio in pejus2, isto é, a proibição de o tribunal superior, em recurso somente interposto polo réu, agravar a pena aplicada na sentença recorrida.

E em ordem a tal objectivo propõe-se no referido projecto uma alteração ao artigo 667.º do Código de Processo Penal3, concebida nos seguintes termos

Artigo único A disposição do artigo 667.º do Código de Processo Penal passa a ter a redacção seguinte:

Artigo 667.º Quando de uma sentença ou acórdão seja interposto recurso somente pela defesa ou pelo Ministério Público no exclusivo interesso da defesa, o tribunal não poderá modificar a decisão recorrida em prejuízo do arguido ou arguidos, quer aplicando pena mais grave, pela espécie ou pela medida, quer revogando o benefício da suspensão da execução da pena ou o da substituição de uma pena mais grave por outra menos grave.

§ único O disposto neste artigo não é aplicável.

1.º Quando o tribunal alterar o título da incriminação constante da decisão recorrida dentro dos limites estabelecidos nos artigos 447.º e 448.º,

2.º Quando, em recurso extraordinário de revisão, a decisão final revista tiver sido condenatória e a proferida no juízo de revisão também o deva ser, nos termos do artigo 691.º,

3.º Quando a acusação tenha interposto recurso subordinado. Não parece deslocado aqui procurar indagar, ainda que muito superficialmente, qual a tradição legislativa nacional a respeito desta importante e delicada questão.

Trata-se, com efeito, de construir o direito, aliás num domínio que toca ou afecta interesses fundamentais da ordem jurídica, e, por isso, a tradição legislativa terá sempre uma palavra a dizer, em maior ou menor medida, pois ajuda à prévia "fixação do sentido dos fenómenos jurídicos, ou seja, a percepção da linha evolutiva dos princípios que dominam e dos sentimentos que inspiram a vida jurídica"5, indispensável a qualquer obra reformadora das leis. Na vigência das Ordenações Filipinas de 1595 (livro III, título LXXII, e livro V, título CXXII), o recurso (apelação) era comum a ambas as partes, e as sentenças subiam oficiosamente, em regra, para confirmação superior, não estando limitado o âmbito de cognição do tribunal de recurso6

Pode dizer-se que o mesmo sucedia no regime da Novíssima Reforma Judiciária de 1841 (artigos 681.º. § II, 1186.º, 1187.º, § único, e 1197.º)7

Com a publicação do Código de Processo Penal de 1929. ainda em vigor, levantou-se em termos claros o problema da admissibilidade da reformatio in pejus.

A jurisprudência dividiu-se, sendo certo, porém, que a partir de 1937 os tribunais superiores se orientaram prevalentemente no sentido daquela admissibilidade.

O comentador Luís Osório, com a sua reconhecida autoridade, escreveu a este propósito.

Pretendem alguns deduzir destas limitações a proibição de em recurso se agravar a pena ao réu, quando ele for o único recorrente.

Este artigo (artigo 647.º, n.º 2, e § 3.º) tem somente por fim dizer quem pode recorrer, e não pôr limites ao tribunal superior. Se daqui se deduzisse uma proibição a favor do réu, também se devia deduzir com os mesmos fundamentos - n.º 2.º e § 4.º - uma limitação a favor da acusação. Em processo cível esta regra de legitimidade coincide com a permissão de agravar a situação do recorrente (Código de Processo Civil, artigo 987.º, § 3.º) Já era essa, e foi desde sempre, a nossa legislação e jurisprudência anteriores. Nos países onde a proibição é admitida é combatida por escritores como Mortara, Garofalo, Stoppato, etc.8

Esta orientação dominante a favor da reformatio veio a encontrar consagração no Assento do Supremo Tribunal.

1 Projecto de lei n.º 4/IX, de 5 de Março do ano em curso, da iniciativa dos Srs. Deputados Júlio Alberto da Costa Evangelista, Manuel Collares Pereira e Tito de Castelo Branco Arantes (in Actas da Câmara Corporativa, n.º 85, do 6 de Março de 1968).

Appellandi usus quam sit frequens, quamque necessarius, nemo est gui nesciat quippe quum iniquitatem judicantium, vel imperitiam recorrigat licet enim nonnunquam bene latas sententias in pejus reformet, negue enim utique melius pronuntiat qui novíssimas sententiam laturus est.

Parece, todavia, que a experiência jurídica romana não oferecia exemplos do proibição da reformatio nos moldes em que hoje entendemos este princípio.

3 A actual redacção deste artigo é a seguinte:

Quando um tribunal dê provimento ao recurso interposto de um despacho de pronúncia ou equivalente ou de uma sentença ou acórdão final, poderá alterar a incriminação, nos termos dos artigos 447.º o 448.º

4 O projecto admite, todavia, a reformatio, em certos casos e dentro de certos limites, consoante resulta do próprio articulado proposto, que se acabou de transcrever, aspecto que mais adiante e pormenorizadamente será analisado no exame do problema na especialidade.

5 Prof. F. A. Pires de Lima, "A reforma do direito privado português" (oração de sapiência), 1961, in Boletim ao Ministério da Justiça n.º 110.

6 Cf Pereira e Sousa, Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, §§ 277, 278, 279 e 286, o Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, VI, p. 315.

7 Cf Luís Osório, ob e loc cit , e voto de vencido do conselheiro Cruz Alvura no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 1950, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 19, p. 144.