Era aí que a PIDE/DGS bebia a informação, montava a cabala, iniciava a chantagem.

Sou testemunha de que em milhares e milhares de processos que a PIDE abriu, tal como as várias polícias abrirão agora à mais leve suspeita e ou insinuação, o que era relevante não era a acusação ou factos relacionados com a subversão e ou terrorismo.

Eram as informações referentes às relações sociais, às relações de amizade, à vida privada do indivíduo e da família que prevaleciam.

Milhares de processos existentes em Caxias demonstram a falta total de provas, e até a falta de convicção para provar, por parte da polícia, os crimes que eram imputados aos arguidos e, pelo contrário, escancaram com a maior sem-cerimónia a vida intima, as ligações amorosas, os passos mais intensamente pessoais de cada um dos visados.

Homens e mulheres que nunca foram presos, mas em relação aos quais a polícia detinha toda a informação quanto à sua vida privada, viram-se joguetes de troca de uma sociedade organizada.

É o incesto desqualificado entre os democratas pidescos e a ideia mínima de democracia.

São agora os autoproclamados próceres da liberdade que, com desvergonha inimaginável, lançam sobre toda a comunidade de novo o espectro da suspeição e da desconfiança, primeiro lance para o medo colectivo e para o asfixiar das energias intelectuais e morais de um povo.

Como é possível

ossos dias, tenhamos a coragem de dizê-lo bem alto, o reverso tenebroso do «socialismo em liberdade» em fuga para a frente, destruindo, no seu pânico incontrolável, os últimos resquícios da sua base ética e moral.

Os arquivos da PIDE, hoje à guarda da Assembleia da República, que, paradoxalmente, legaliza a lei de segurança interna, atestam de forma irrefutável, e até que sejam destruídos, que o critério base de actuação de uma policia política é a capacidade física de submeter o cidadão à chantagem resultante do confronto com actos que julga últimos e definidores do seu exclusivo espaço de liberdade física e de consciência.

Nesta questão base - em que a definição de cada um de nós não se faz em termos de pró ou contra, mas se posiciona numa perspectiva de apreciação global perante as gerações vindouras, quaisquer que sejam o seu passado e origem - do testemunho de quem sentiu no compulsar de milhares de processos os lances dramáticos da liberdade individual e da intimidade pessoal vilipendiada tem provavelmente que sobrar uma sentida ironia.

Afinal, como é possível aprendermos com os nossos próprios carrascos?!!

Quando manifesto preocupações acerca da projectada legislação de segurança, sei do que falo, porque conheço a massa de que são feitos os homens. Por exemplo, O Dia escarrapachou a toda a largura da primeira página este título preocupante e preocupado: «Tentativa insurreccional ontem no Terreiro do Paço», a propósito de uma concentração de operários da Lisnave e dos incidentes daí resultantes. Notando que mais nenhum jornal dera pela tentativa insurreccional, F. B. perguntava no Expresso se não seria «indispensável a colaboração de outros jornais que aceitassem desempenhar um papel igualmente higiénico». Mas a minha questão é outra e começarei por algumas concessões.

A concentração não obedeceu a todas as formalidades exigidas pela lei. Mas reconheça-se também que não será fácil pedir a trabalhadores sem salário espírito legalista e sonhos cor de rosa. Se a violência explode a propósito de simples desafios de futebol e até causa mortes, como recentemente aconteceu em Roma, teremos de nos espantar que ela se desencadeie quando a miséria bate à porta? Se a polícia, quando procura restabelecer a ordem após um desafio de futebol, se torna alvo da agressividade dos exaltados amadores da bola, teremos de nos espantar quando o mesmo sucede numa manifestação em que os trabalhadores protestam, não por perderem o jogo, mas porque se encontram numa situação injusta e extremamente dolorosa? Não será