Tem 12 anos e está matriculado na "primeira classe", sexto ano da catequese. António (nome fictício) acende um cigarro. "Sou o segundo mais velho da classe". O outro menino tem 13 anos e também pedia esmola, mas agora "foi internado - a mãe dele e o pai dele são bêbados e ele andava na droga, já se injectava e tudo".

O miúdo, magro e encardido, levanta-se cedo, bem cedo, mas é raro ir às aulas. Tem amigos que frequentam a escola de manhã e se metem na "pedincha" à tarde, "ali mesmo, no Pico da Torre" - por onde passam muitos "ingleses" (sinónimo de estrangeiros). Mas ele prefere apanhar o autocarro, às 8h30, 9h00, para o Funchal.

O mealheiro colorido que usa na "pedincha" não circula, como ele, entre o Funchal e Câmara de Lobos; fica escondido num buraco, encavado na relva, que acaba por mostrar ao PÚBLICO depois de alguns dias de convivência. É assim desde que se lembra. "Comecei esta vida aos seis, sete anos".

A confiança de António é uma conquista que se cumpre, pouco a pouco, com atenção e com prendas - de consumo imediato, mas também de levar para a casa, um T4 que partilha com 17 familiares. Os pais "não perguntam" quem lhas dá, tal como não perguntam onde arranja o dinheiro que o obrigam a entregar - apesar de dois dos seus irmãos terem entrado, quando crianças, em filmes pornográficos.

Nos piores dias, o miúdo louro de dentes cariados angaria "uns dez euros". Nos melhores, uns 25. Mas já houve máximas de "50 e de 70". "Dou uma coisinha à minha mãe e fico com uma coisinha". O dinheiro não lhe aquece nas mãos. "Vou para os carrinhos eléctricos, compro cigarros, às vezes jogo à batota e lá se vai o dinheiro todo!", ri-se. Também compra "comer, roupa e sapatilhas", essas "coisas que se precisa".

António, tal como outros meninos das Malvinas, joga tudo a dinheiro: loto, barra, apanhadas, futebol - "quando a gente não tem dinheiro para jogar, atiramos garrafas para dentro do campo, para os outros não jogarem", diz, no seu sotaque cerrado. Não é "grande jogador de batota", denuncia o amigo do peito, de 14 anos. Mas poucos o ganham nos concursos de arrotos. "Sei dizer o meu nome todo, quer ver?", exibe-se, uma noite, no centro da cidade. Uma proeza que lhe vale, amiúde, dores de garganta.

O menino passa a vida na rua. Por vezes. mete-se em zaragatas, em pequenos furtos - flores para vender, óculos de sol para "brilhar", uma carteira ou outra. Farta-se de "perder noites", no centro de Câmara de Lobos. Aos fins de semana, descola-se até ao Funchal, onde vagueia e arruma uns carros até às cinco da manhã. Por vezes, acompanham-no outros dois irmãos, um de nove anos e outro de 13. "Vamos a pé, é só meia hora".

"Os velhos porcos não vão para as discotecas", segreda, num ocasião em que tinha fumado um charro e estava menos na defensiva. "Os velhos vão à procura da gente ao parque de estacionamento do centro comercial". Para quê? "Eles não aguentem com uma mulher, uma mulher vai para cima deles e eles rebentem todos!"(sic), ri-se. Não fala de prostituição. Sobre isso, de modo claro, diz apenas: "Um dia um velho queria-me dar cem escudos para abusar de mim, o porco!" Mostra um pequeno canivete: "Tá a ver isto? É pequenino, mas pica!".

Na rua também se sonha. Não quer acabar como os dois irmãos que tem na cadeia. António - revela, certa noite, à mesa de um restaurante - sonha ser guarda-redes. Já esteve no União da Madeira. Foi expulso, falta-lhe disciplina. "Um gajo faz qualquer coisa e é logo: 'mudar de roupa e tomar banho'". Meneia a cabeça: "Tenho de deixar de fumar!" O amigo explode numa gargalhada. E ele sorri. "Quando começar , vai ser de vez". E a escola? Encolhe os ombros.

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