É domingo e poucas serão as padarias a funcionar, por esta Lisboa. Mas graças a Deus e ao senhor Jorge mais a Dona Isolina, na que lhes pertence e onde de sol a sol trabalham como mouros, até mesmo aos domingos e feriados há sempre um período, das sete à uma da tarde, para aquele pãozinho quente do nosso contentamento. O estabelecimento fica a cinco minutos da minha casa e saio pouco passa das dez, pelas carcaças e os jornais.

É quando deparo com o táxi encostado ao passeio, na curva da rua, junto ao muro alto que aí se ergue.

Passo por ele e reparo no vulto inclinado para a frente, braços cruzados descansando no volante, a cabeça despenteada reclinada sobre eles, como quem puxa um cochilo gostoso no silêncio do prado adormecido.

O vidro da porta está subido quase até acima e, quando olho melhor, reparo no rectângulo de papel prateado aberto sobre o estofo, a seu lado, e no invólucro de cartolina com uns dizeres quaisquer, caído no chão junto aos pedais. Não custa adivinhar, dentro, a seringa usada.

É um rapaz aí à volta dos 23, 25 anos, tem um rosto tranquilo, de anjo adormecido, e escapa-se-lhe dos lábios entreabertos um leve ressonar.

«Ganda pedrada!», penso de mim para mim. E continuo o meu caminho.

Quando, meia hora depois, regresso já com o pão no saco, a bica tomada, os jornais do dia debaixo do braço, o táxi ainda lá está. Mas o cenário já é outro. Há um polícia (que alguém da vizinhança terá chamado pelo telefone?, do giro que, de quando em quando, a esquadra próxima por ali faz?, não importa) meio debruçado para o interior do veículo, o rapaz está desperto e de busto aprumado, e, enquanto liga o motor e se prepara para arrancar, ainda ouço, de raspão, a advertência do cívico: «...e vê lá se ganhas mas é juízo.» O carro põe-se em marcha com um leve rechinar de pneus, o polícia prossegue na sua volta e eu entro em casa, antes que o pão ainda a cheirar a forno arrefeça.

Dois quarteirões mais adiante, é possível que esteja alguém à beira do passeio, à espera do primeiro táxi que surja.

Alguém que estenderá o braço quando aquele apontar da esquina e que seguirá para Benfica ou Alcântara, feliz da vida por não ter tido de esperar assim tanto - sem que lhe passe pela cabeça qual o estado em que se encontra quem o conduz.

Pois é. Esta coisa de hoje em dia qualquer gato-sapato poder pegar alegremente num táxi, praticamente sem controlo por parte de ninguém, e aqui vou eu ganhar uns cobres, começa a ser preocupante. Quer para os utentes, quer para os próprios profissionais realmente cumpridores e responsáveis, conscientes do peso e da delicadeza do seu trabalho.

Cada vez mais a classe dos taxistas, onde tenho grandes amigos e pela qual tenho o maior respeito, até pelos conhecidos riscos a que se expõe, tem sido alvo de críticas, denúncias e acusações que só contribuem para lhe denegrir a imagem. E, como sempre, paga o justo pelo pecador.

O problema da droga, em relação a quem está ao volante de um veículo, sobretudo quando se trata de um veículo posto ao serviço do público, é tanto ou mais grave que o do álcool.

Só com uma diferença: é que o condutor apanhado em manifesto estado de alcoolemia - e lá está, para o comprovar, o balãozinho - vai mesmo dentro, pode ficar sem carta, e por aí fora.

Naquela manhã de domingo, e de uma forma quase brutal, apercebi-me do risco que eventualmente correrei num qualquer dia destes, quando, sem que de tal me aperceba, me meta no primeiro táxi que passe.

Com efeito, nada me garante que o jovem condutor que ali vai não seja precisamente o mesmo que eu acabara de ver assim, meio caído sobre o volante, com a embalagem do chuto aos pés.

E isto não significa, da minha parte, qualquer sentimento de repúdio ou de intolerância para com o toxicodependente.

É, sim, e tão-só, uma questão de sobrevivência. A minha própria sobrevivência. Porque não acredito que, ao sair dali para o seu circuito de x horas pelas ruas da cidade, no pega-e-larga dos homens, mulheres e crianças que o destino lhe terá feito entrar no carro, aquele taxista estivesse em condições de desempenhar a sua tarefa com um mínimo de segurança.

Para ele - e para os que assim descuidadamente se foram servindo do seu táxi.

E esse é que é, de facto, o problema.

Guilherme de Melo