%Rui Cardoso Martins
Mais uma prova das más relações do capitalismo com o Sonho: Gomes, o decorador de montras de cosmética.
Foi numa operação de rotina que o apanharam. Ou melhor, que se "detectou uma situação anómala" que, aliás, se veio "a revelar mais grave do que, de início, se imaginava, tendo como protagonista, precisamente..." Precisamente o decorador de montras de cosmética, Gomes.
Em plena conferência das contas anuais de 2000, a fim de se proceder ao fecho de contas para a apresentação do Balanço Anual, descobriu-se que Gomes não tinha deixado a carrinha na garagem, durante 15 dias, no ano anterior!
Se é traição, veremos para que lado pesa mais. Ele enganou a empresa ou foi levado pelas expectativas? Eu vi Gomes no tribunal, no seu fato elegante, preto e liso como o cabelo no pescoço. Estava sinceramente magoado. Estava ainda mais magoado nos instantes em que era evidente que mentia. A empresa também o enganou, foi uma traição deixá-lo pensar ser uma coisa que não era, e nunca foi, e não será.
Três facturas de combustível lançaram-no na rua, como um criminoso. Gomes metera 107 litros de gasóleo e fizera 2120 quilómetros. Uma excelente média, não haverá muitas viaturas que façam 5,04 lt. aos 100 km, em todo o mundo. O problema é que Gomes estava de férias e o automóvel não era dele. Assim começaram os seus problemas.
De responsável de decoração de montras em várias cidades do país, o homem que transportava cartazes e cremes, o profissional que tratava da beleza das mulheres e das lojas, foi transformado em ladrão. Furto de uso de veículo e burla.
O seu trabalho implicava que só às quintas-feiras, normalmente, se reunia com a chefe do departamento visual. Discutiam o trabalho da semana e ele ia fazê-lo. Assim, o carro ficava sempre em sua casa, até aos fins-de-semana. Era normal trabalhar sábado e domingo.
Entre 5 e 20 de Agosto de 2000, de facto, marcou férias. Mas não as fez logo, disse. Na primeira semana, pediram-lhe mais serviço e foi levantar material às Caldas da Rainha, a Tomar e a Abrantes. Aí usou a carrinha da empresa. Na segunda semana fez férias, é verdade, e foi para o Algarve, "mas no carro do meu pai."
A empresa fala noutra aventura: Gomes atravessou Espanha, as planícies no cume do Verão, desceu até Barcelona, às Ramblas, à estátua "de Colón", para cima e para baixo, daqui, do alto desta carrinha de cosmética, já vejo a América. Eu, que ganho 120 contos por mês.
O advogado da empresa encontrou a definição espiritual do crime, no jurista José Faria Costa. Um bom comentário penal tem psicologia, vê os desejos humanos:
"No furtum usus o que o agente quer e representa é tão-só a utilização ilegítima de um veículo. Ele quer utilizar o veículo, ele quer usá-lo, não com o animus de um proprietário, mas sim com a atitude espiritual de um possuidor precário."
-A viatura estava-me atribuída, 24 horas por dia. E eu tinha o telemóvel ligado em permanência!, explicava Gomes.
Afinal, tão ciosa da sua carrinha, com um verniz tão estaladiço, a empresa de cosmética só deu pela falta quase um ano depois.
E Gomes repetia o percurso que terá feito entre uma montra nas Caldas, e um salto a Abrantes, para "levantar material", mas ninguém se lembra de o ver nesses dias. Era um percurso secreto, na sua cabeça, como a "Viagem à Volta do meu Quarto", de Xavier de Maistre. "... quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da minha mesa até um quadro que está colocado num canto: daí, parto obliquamente para ir à porta." Mas, se encontra o sofá no caminho, senta-se despreocupado, já não chega à porta.
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