Sob o Signo de Pessoa

O culto que José Blanco votou à obra de Pessoa não fez dele apenas o mais exaustivo dos seus bibliógrafos. Condicionou a sua acção cultural ao serviço da Fundação Gulbenkian ao longo destes últimos 30 anos. José Blanco, na sua quase paixão idolátrica, percebeu que Pessoa, a sua obra, a sua mitologia, o romance mítico das suas máscaras, eram o mensageiro ideal para nos abrir as portas da cultura alheia, durante tantos anos quase inacessível. No encargo que a Fundação lhe deu tinha outros mensageiros e com mestria os soube utilizar, tão universais eram na sua comunicação, como a música e o bailado. Tornar visível, presente, a nossa criação poética, a nossa ficção, era mais difícil. A saga-Pessoa, com o tempo e com a irradiação do mito Pessoa para que pessoalmente também contribuiu, será para a nossa cultura, como a mítica "matéria da Bretanha".

Nessa disseminação da presença de Pessoa no mundo teve a acção de José Blanco um papel de relevo não apenas como autor de "Pessoa em Pessoa" mas como incentivador e responsável pela edição francesa das Obras Completas de "la Découverte" com introdução de pessoanos conhecidos como Teresa Rita Lopes, José Gil e outros. A França estava publicando então a preciosa edição "Bourgois" e essa iniciativa da "Difference" podia parecer pleonástica. Na verdade, a nova edição do editor português de Paris, Joaquim Vital, quase luxuosamente impressa, tinha uma originalidade: era dedicada apenas aos textos de Pessoa publicados em vida pelo autor da "Ode Marítima". Tomando essa opção José Blanco interinava uma velha ideia do biografo por excelência, de Pessoa, João Gaspar Simões. O romancista de "Eloi", não sem razão, sabia, melhor do que ninguém, que Pessoa não tinha morrido "inédito", como era costume dizer-se quando se evocava Pessoa. Para ele, Pessoa tinha publicado, em vida, o essencial . E se, pomos de parte textos do futuro "Livro do Desassossego", hoje tornados o núcleo da mitologia pessoana, Gaspar Simões tinha razão. José Blanco ilustrando essa constatação, afinal óbvia, punha Pessoa no seu estatuto certo - o de um autor pouco conhecido na altura da sua morte, mas já admirado por alguns "happy fews", entre os quais, o mesmo João Gaspar Simões e José Régio. Que mais do que ninguém tinham contribuído para que ele não fosse o autor "maldito", por inédito, da sua legenda nascente.

José Blanco não limitou apenas a bibliografia, ao acompanhamento erudito da edição de Joaquim Vital a sua quase romanesca paixão por Pessoa e, sobretudo pela sua vida menos real do que virtual. Como muitos outros, à sua maneira, viveu ludicamente a sua admiração pessoana. Não sendo romancista não podia servir-se dele como matéria de ficção, confessada ou indirecta como Saramago, Tabucchi, Agustina, e tantos leitores pelo mundo fora fascinados com a realidade "Borgesca" de Pessoa, polipeiro de "ficções" sem fim, pois nada há a ficcionar. Nada que tenha a ver com a sua vida embora tudo com a ficção que ele já era para si mesmo. José Blanco também não teatralizou a textualidade pessoana como outros "íntimos" de Pessoa o fizeram e, em particular, Teresa Rita Lopes. Mais modestamente, mas com graça, fez dele o "gadget" assumido do seu culto pessoano interessando-se menos pelas suas ideias ou visões, que pela sua realidade de personagem literária à procura de si mesmo.

Tomou-o à letra, em primeira instância, entrevistou-o, dissolveu-o um pouco na comédia cultural do seu tempo e nosso, converteu-o sem pretensão, em figura de banda desenhada, mas também em banda anúncio da sua peregrinação pelos diversos cantos do mundo onde Pessoa lhe podia servir de intercessor. Sem cálculo, pelo menos no início, o seu notável serviço em favor da presença da cultura portuguesa no Mundo, recebeu dessa referência a Pessoa uma dimensão e uma aura que a simples fidelidade ao interesse do pelouro que lhe fora confiado não exigia. Foi a sua escolha. E não foi má escolha pessoal e institucional. É um paradoxo que o poeta da inacção ou da acção fictícia tenha inspirado um tão activo missionário da nossa presença no único Quinto Império, o da Cultura mais ou menos onírica que deixámos onde a língua de Pessoa lhe deu a última demão. Mas o signo de Pessoa é como os desígnios de Deus: incompreensível e evidente.

Ensaísta

A forma e o fundo

Moderação social

Os preços dos telefones e da energia

Um tostãozinho...

Sob o signo de Pessoa