Fernando Hilário
(Continuação do número anterior)
Ou já sonhava ou o que ouvia era mesmo uma voz a chamá-lo: Sr. António! Sr. António!
Acendeu a luz do candeeiro da mesinha. Quem assim chamava, parecia estar dentro do quarto. Era uma voz aguda, fina, trémula, insistente, suplicante: Sr. António! Sr. António!
Mas no quarto não havia ninguém. Estranho! Iria jurar que a voz que ouvira estava ali mesmo! Que palermice! Que estupidez de sonho! Fechou a luz. Enroscou-se na cama e, em esforço, pôs-se a chamar a si o sono.
Pouco tempo depois, porém, voltava a ouvir: Sr. António! Sr. António!
Não, não; não sonhava: era verdade que o chamavam. Percebeu isso, claramente. Agiu dum pulo: premiu o botão do candeeiro ao mesmo tempo que ficou na cama como um coelho; e com olhos de lanterna fixava como um louco tomado de pânico todos os pontos do quarto. Mas no quarto não havia ninguém. Merda! Que raio de noite! O que se passa?! O que se passa?! O que está a acontecer comigo?! Iria julgar que alguém me chamava.
Procurou serenar. Se fumar um cigarro e beber um pouco de água, talvez a excitação passe. Decidiu fazer isso; bebeu um copo de água e acendeu um cigarro. Entretanto, deu-lhe para olhar para o candeeiro da mesinha. A mosca estava lá. Insultou-a: Estás aí, ó parvalhona!? Como resposta, pareceu-lhe ouviu dizer: Não vejo razão para o insulto!
Podia lá ser! Fumava, tinha a luz acesa, estava sentado na cama; há instantes atrás bebera água; agora até dava bofetadinhas a si mesmo... Era, pois, certo que estava acordado! Mas como ouvia falar e não via ninguém?!
Da posição de coelho passou à oriental, e tentou reflectir: Arre! Já sei! Concluía que o chamavam à porta do quarto. É do corredor! Por que não me ocorreu isso antes?! E foi ver. Mas não viu ninguém. Espreitou. Voltou a espreitar. Espreitou para um lado e para o outro. Mas não viu ninguém. Que merda! Que grande merda! E, tonto, voltou para a cama. Ia a apagar a luz, quando: Sr. António! Sr. António! - a voz de novo.
Desta vez, ficou completamente tolhido. Meio sentado, meio deitado, na cama, era uma estátua.
Talvez seja alguém debaixo da cama. Ou no guarda-fatos. Para a primeira hipótese, bastava-lhe debruçar-se e espreitar. Mas não conseguia. O sangue congelara-se-lhe nas veias. Um suor gélido povoara-lhe a testa numa imensidão de gotas. As mãos imobilizaram-se, cravadas, crispadas, na roupa da cama. A garganta subira-lhe à boca ressequida. Tinha as pernas esticadas no limite de uma corda tensa. E os olhos eram agora os faróis de um automóvel parado num cruzamento de caminhos à noite.
Que fazer? Como sair dali? Tentava pensar. Mas a cabeça, a mente, o cérebro, ou o que fosse, só latejava. E o sangue bruto, ferino de lâminas de gelo, empurrava-lhe as fontes, querendo rasgá-las, rebentá-las. Sr. António! Ó sr. António! - chamava a voz, aguda, fina, trémula, insistente e ainda mais suplicante. Pst! Pst! Estou aqui! Aqui!
Aqui?! Aqui aonde? Que raio! Pode lá ser! Não! Só pode estar debaixo da cama. É alguém que lá foi parar, sabe-se lá porquê! E só de pensar que alguém ali estaria tão perto o tolhia ainda mais. E quem será? Quem poderá ser? Talvez uma mulher. É: a voz é de mulher. Mas que mulher?! Talvez, uma mulher ferida, perseguida, que procurou abrigo. Ou, quem sabe, talvez uma admiradora, uma apaixonada... Sr. António? Ó sr. António - voltou a voz, agora mais insistente e ainda mais suplicante.
Conseguiu espreitar para debaixo da cama. Mas fê-lo tão sem tino, que duvidou não ter visto ninguém. Voltou a espreitar. Não: debaixo da cama não está ninguém. Mas então onde poderá estar?! Só pode ser no guarda-fatos.
Armou-se de duas caixinhas, uma em cada mão. E quarto fora foi andando em passos de ladrão. A meio, substituiu as caixinhas pela cadeira Dona Maria. Estava agora diante do guarda-fatos. As pernas eram-lhe cordas de contrabaixo a tremer. Aliás, sentia os músculos todos do corpo em pancada de diapasão. Mesmo assim, ergueu a arma acima da cabeça e perguntou com voz de terror: - Quem está aí? E ia exigir que saísse imediatamente; pontapearia até a porta, caso fosse necessário... Ó sr. António! Aí não está ninguém. Ainda não percebeu que quem o chama sou eu?! Olhe para aqui, sr. António! Para aqui, sr. António - exigia a voz.
Ora, a voz vinha da janela, ali à cabeceira da cama! Que parvo! Não percebera que o chamavam lá de fora!
(esta história tem continuação)