Vontade de mudança

A recente aquisição do Banker’s Trust americano pelo Deutsche Bank alemão, é um dos exemplos mais recentes e mais significativos da febre de fusões-aquisições que se apoderou de sectores estratégicos da economia. Febre que é expressão da «guerra económica» entre as grandes potências e os grandes monopólios transnacionais, da sua luta pela partilha e domínio de mercados, da corrida ao máximo lucro. A centralização e concentração do capital e da riqueza que hoje se verifica numa escala sem precedentes é acompanhada pelo alastramento, igualmente inédito, do desemprego, da pobreza, da marginalização social. A brutal deterioração das condições de vida das grandes massas é directamente proporcional ao crescimento dos lucros e das cotações bolsistas. Está criada uma situação insustentável que inevitavelmente conduzirá a explosões de descontentamento e protesto social e a grandes e por vezes surpreendentes movimentos de rejeição do estado de coisas existente. Da clareza de o bjectivos e grau de enraizamento popular dos seu protagonistas dependerá em última análise o seu resultado.

Vem isto a propósito das eleições presidenciais na Venezuela. Eleições «democráticas», no quadro de um regime «pluralista», numa das «grandes democracias» latino-americanas onde há 30 anos funciona um «salutar» sistema de alternância entre dois grandes «partidos democráticos». E assim sendo tudo deveria estar a decorrer na «normalidade». Mas não está. Os «democratas» da AD social democrata e do Copei «democrata-cristão», a coligação disfarçada de contraposição que têm dominado a vida política venezuelana, entraram em pânico. Os grandes interesses económicos dominantes neste riquíssimo país ameaçam com retaliações. Agita-se o espantalho de golpe de estado: uns porque consideram que Hugo Chavez, o candidato dos "descamisados" apoiado por forças de esquerda seria um «golpe de estado eleitoral»; outros porque desejam um autêntico golpe de estado reaccionário que sufoque a vontade de mudança do povo venezuelano. O amigo americano, que tem na Venezuela o seu principa l fornecedor de petróleo, agita-se. E a julgar pelos títulos sensacionalistas do "Público" de hoje, 6.12.98 - «Portugal tem planos para retirar emigrantes» - até o governo português teria entrado na dança.

Noutra ocasião se voltará à questão venezuelana, que não pode configurar-se simplificadamente a preto e branco, e em que certamente, em torno da candidatura do coronel Hugo Chavez, conflui um leque de interesses e aspirações muito amplo e até contraditório. Uma coisa é porém clara: os agudos problemas sociais e as violentas contradições da sociedade venezuelana apelam a profundas transformações democráticas, sendo evidente que a esmagadora maioria do povo rejeita a podridão do sistema, aspira à justiça social e a uma efectiva democracia. É isso que os interesses instalados consideram intolerável, na Venezuela como em qualquer outro país, chegando mesmo a agitar o papão do pinochetismo e da intervenção estrangeira contra quaisquer propósitos de radical mudança das regras do jogo.

O que se passa na Venezuela, sejam quais forem os resultados das eleições presidenciais e a evolução ulterior dos acontecimentos, é uma nova confirmação de que, um pouco por todo o mundo se alarga o combate às injustiças e desigualdades sociais que se aprofundam, e cresce a resistência ao domínio avassalador das multinacionais e das organizações internacionais que, como o FMI, servem os seus interesses. É importante assegurar que este país, para onde foram mourejar tantos portugueses em busca de uma vida melhor, possa encetar, sem pressões, ameaças e intervenções externas - uma alternativa progressista de desenvolvimento assente na vontade do seu povo. — Albano Nunes

Nota - Este artigo foi escrito antes de conhecidos os resultados das eleições que Hugo Chavez venceu folgadamente

«Avante!» Nº 1306 - 10.Dezembro.1998