Figuras de retórica
Para onde caminhamos? Há quem pense que pouco importa saber. Mas é essencial que se saiba. Desde o liberalismo em moda ao social-estatismo milagreiro, as respostas assemelham-se assustadoramente. Há erros? Outros que os paguem! E há corrupção? Outros que assumam! Há que mudar? Outros que o façam! há que conservar? Que se conserve, desde que tudo fique como está ... E, perante esta filosofia, as figuras de retórica bastam. Pois se até na selecção de futebol se sai menos mal sem treinador nem estratégia ... Por que não também o País? Mas não será preciso algo- mais do que ver «a multidão que passa sonolenta e melancólica, cheia de aborrecimento e de tristeza, arrastando os joanetes da vida?» como diria Guilherme de Azevedo há uns anos?
Haverá muitas maneiras, até rendilhadas, de o dizer. Mas o assunto requer que entremos directamente.
A proposta de lei n.º 71/111 (lei de segurança interna e protecção civil), vista e aprovada em Conselho de Ministros de 24 de Maio de 1984 e subscrita pelo Primeiro-Ministro, Vice-Primeiro-Ministro, Ministro dos Assuntos Parlamentares, Ministro da Administração Interna, Ministro da Justiça e Ministro das Finanças e do Plano, está a provocar um grau de sensacionalismo político inteiramente prejudicial.
De facto, a questão liga-se e é entendida sobretudo na área dos políticos, dos juristas, e vagamente pelo cidadão comum, cujo desejo de segurança é óbvio.
O tema presta-se, pois, a fecundos jogos, divisões, ataques e contra-ataques. E à sedução de certos corpos institucionais ...
Mas o problema fundamental do País é, com tal discussão, inteiramente esquecido: e esse problema é o problema económico-social.
Mais uma vez a lei e a ordem fazem esquecer o progresso como eles querem fazer-se acreditar.
A proposta é extemporânea porque foi aprovado um código penal pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que está em vigor desde J de Janeiro de 1983.
Por conseguinte, o código onde se definem e punem os crimes contra as pessoas, contra a paz e a Humanidade, contra valores e interesses da vida em sociedade (entre eles, contra incêndios, explosões, radiações e outros de perigo comum, contra a saúde, contra a segurança das comunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas e, entre estes, o terrorismo), contra o património e contra o Estado.
Esse código penal tem defeitos, como tudo na vida, mas é um esforço sério de modernização numa área importante da vida nacional.
(É claro que aí seria de entender que, estrategicamente, seria de começar pelo Código Comercial, mas nós amamos o «clássico» o repisar dos assuntos, e estas questões da repressão estão-nos na massa do sangue há 4 séculos, sem proveito da maioria.)
Ora, o que era necessário face ao novo Código Penal e aos corpos policiais herdados?
A resposta é fazer um código de processo penal novo e remodelar os corpos policiais, dando-lhes os conhecimentos e meios científicos e tecnológicos mais avançados que permitam dominar a criminalidade, balizada pelo novo Código Penal, assim prestigiando esses corpos policiais pela eficácia prática da sua intervenção, normal, quotidiana, respeitadora da lei constitucional.
O leitor poderá pensar que isto de dizer que é necessário um novo código de processo penal é por uma questão geométrica, de beleza intelectual e consequente, face ao novo Código Penal! Mas não! é uma necessidade prática, porque, tendo sido aprovado pelo Decreto com força de lei n.º 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929, foi de tal modo alterado por legislação avulsa que há muito vem sendo reclamada a feitura desse novo código de processo penal. Hoje, depois da entrada em vigor em 1983 do novo Código Penal, ficou esta área do processo penal ainda mais confusa, porque, obviamente, a desadaptação entre textos é ainda maior.
Isto cria dificuldades aos corpos policiais, aos cidadãos, aos juizes, que em Lisboa funcionam num edifício velho, sujo e sem dignidade, o conhecido Tribunal da Boa Hora.
Era verdade que a Constituição garantia a liberdade de expressão; mas a lei punia qualquer acto que pudesse ser construído como subvertendo o Estado. Quem podia adivinhar quando é que o Estado se ia pôr a gritar que tal ou tal palavra o estava a subverter?
Milan Kundera (1983), The Book of Laughler and Forgetting, Penguin, p. 4.
Leio a exposição de motivos da proposta de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República sobre a segurança interna (e protecção civil!) e pasmo. Afinal, é a nossa próxima (?) entrada na