Margarida Vieira Mendes. Ela era das melhores de nós Margarida Vieira Mendes morreu. Era professora universitária: lia, pensava, estudava, descobria, escrevia (a sequência dos verbos é sua), ensinava aquilo que investigava - literatura e cultura portuguesas, ensinava a ensinar literatura, e não fazia de conta que aqueles estudantes não estavam ali. Antes pelo contrário pensava-o, premeditava o que fazia. Ela era das melhores de nós, e devia haver uma maneira de o país, os portugueses saberem disso.

No seu longo e admirável trabalho sobre "A Oratória Barroca de Vieira" [Lisboa, ed. Caminho, 1989], ela mobiliza uma pluralidade de "saberes de diversa proveniência: retórica, teoria da enunciação, história de mentalidades e de formações discursivas, estética, simbologia, crítica textual e paratextual". Não é um eclectismo invertebrado e mimético, é a sua maneira, inteligente e rigorosa, de lidar com o que chamou "a dupla determinação" histórica da leitura - a que lhe vem da reserva da alteridade do objecto texto, e aquela que marca a historicidade do intérprete e da interpretação. Era a sua maneira, ainda, de jogar na interacção difícil entre descrição e interpretação, dificuldade de que ela tinha aquela consciência pela qual começa a fazer sentido falar-se de ciência. Ela compreendia o carácter activo da compreensão, e assumia as suas "obsessões intelectuais". "De entre elas, escreveu, não contaram pouco interrogações liminares deste tipo: como se faz a história da lit

Ela, que mudou o "para nós" de Vieira, o Vieira que vária prosa portuguesa contemporânea, no seu melhor, por vezes revisita; ela, que mudava o que são para nós aqueles sobre que escrevia; ela, que não esquecia a literatura contemporânea; ela, que pensava a relação da literatura com outras artes; ela, que preparava edições de textos do nosso património literário; ela, que trabalhava com diversos instrumentos teórico-metodológicos; ela, que reconhecia o carácter precário, relativo, contingente da interpretação; - era discreta, não era arrogante. Ela, que falava da "misteriosa relação do homem com a palavra", não desistia da busca da compreensão e do sentido. Como agradecer-lho?

Margarida Vieira Mendes era daqueles que entre nós melhor lidam com os dispositivos retóricos de um texto ou de uma formação discursiva. Fazia-o sem os reduzir, antes numa tradição longa e intermitente, para a qual a figuralidade é intrínseca à linguagem, "equivale à própria natureza ou essência da linguagem", - uma tradição que ela expressamente referia ao Nietzsche filólogo. Ela sabia que a literatura enquanto invenção de possíveis da linguagem não é um uso "parasitário", desviante, ou anómalo, um outro separado da linguagem comum. Ela sabia que a possibilidade da literatura está radicalmente inscrita no haver linguagem, no falarmos uma língua; e que isso deve afectar o modo como pensamos a linguagem, uma língua. Sem preconceitos contra outros modos de saber, nem ânimo de disputa de fronteiras, ela sabia que a linguagem é coisa demasiado séria, para ser deixada apenas à linguística ou à filosofia. Por isso, ela achava que um ensino do português que recalque ou separe a literatura é um potencial desastre e uma violência feita aos possíveis dos que aprendem. Mas não se ficava pelo escândalo ou pelo protesto, trabalhava sobre isso e propunha. Quando morreu, tinha em preparação um trabalho sobre a Didáctica, não estritamente da Literatura, mas do Português.

Margarida Vieira Mendes era uma universitária que pensava estrategicamente a universidade. Não era daqueles oficiantes que sentem o templo ameaçado, nem era sua a desenvoltura dos que se dispõem a tudo aceitar. Ela compreendia a necessidade urgente da transformação da universidade, mas pensava-a na liberdade e na participação, não na desordem violenta do economicismo neo-liberal. Com ela, a universidade fazia sentido. Sem ela, a tristeza da universidade fica mais triste.

A Margarida Vieira Mendes morreu. Um dia escreverei sobre ela. Hoje, tem que ser depressa, mas está certo que assim seja; ela merece-o. No dia em que morreu [sexta-feira, 7 de Fevereiro] , a RTP 2 passou o "Ordet", de Carl Theodor Dreyer. No fim do filme, uma formosa mulher levanta-se da morte, com um fio de lágrimas terrestres. Nesse dia, o filme não chegou. Como não chega saber que todos iremos morrer um dia. Nós precisávamos, vocês precisavam desesperadamente dela. A língua devia cair-nos aos bocados, deve ter dito alguém.

Ela era das melhores de nós, e devia haver uma maneira de vocês saberem quem perderam.