Nas margens do espaço e do tempo

Maria José Fazenda

Com "Chère Amour", o coreógrafo francês Michel Kelemenis partilhou as suas belas cartas de amor com o público que na sexta-feira se deslocou ao Auditório Nacional Carlos Alberto, no Porto. No final, todos lhe agradecemos a dádiva, com exaltação. "Chère Amour" é uma obra dançada por um elenco exclusivamente masculino: Arnaud Cabias, Michel Kelemenis, Frédéric Leprévost, Bertrand Lombard e Pascal Montrouge. Ou cinco bailarinos de uma extraordinária erudição técnico-interpretativa.

No fim-de-semana, em Lisboa, a Culturgest apresentou uma obra exclusivamente dançada por mulheres, "Tiny Sisters in the Enormous Land", pela Companhia de Bebe Miller. Uma obra competente, mas que ficou aquém das expectativas que sempre gera o trabalho desta coreógrafa norte-americana (sobre os criadores Michel Kelemenis e Bebe Miller, e obras, ver PÚBLICO, suplemento Zap, de sexta-feira).

"Chère Amour" convoca, na sua densa e coerente dramaturgia, as orlas dos espaços, as margens do tempo, os limbos da memória, uma existência liminar, que se suspende para se falar de amor. A primeira imagem cénica é inequívoca desta liminaridade: um homem está acocorado junto à fotografia de uma porta fechada (cenografia de Michel Kelemenis com colaboração de Christine Le Moigne, e fotografias de Peter Bromley). Ao longo dos cerca de setenta minutos que dura a peça são colocados e retirados do palco outros elemento cénicos da mesma natureza: imagens de portas entreabertas que deixam passar raios de luz, ou que se abrem para deixar passar uma mulher, e escadas que conduzem a portas encerradas. E os corpos, ora à espera, e exprimindo uma profunda nostalgia, ora abraçando-se e beijando-se ternamente, ora exprimindo felicidade numa exteriorizada exaltação, ou, pelo contrário exprimindo uma agitação atormentada, deambulam algures num tempo indefinido, não circunscrito: "É meia-noite: o hoje transforma-se em ontem, o amanhã em hoje" (excerto da terceira carta, dita por Frédéric Leprévost). No final, os cinco homens, que são um só, silenciam-se, numa cadência melancólica.

A coreografia é um poema em prosa, ininterrupto, fluído, pontuado entre os quintetos, os quartetos, os duetos ou os solos. Há belíssimos frisos, "lifts", linhas e ângulos que se desfazem em ondas. O movimento feito de uma fusão de vocabulários clássico, cunninghamiano e de gestos e fraseados inventados com génio, nada descreve ou ilustra, mas invoca, através da claridade do seu grafismo, da legibilidade da sua sintaxe, a escala dos estados de alma que os temas musicais, que oscilam entre as tonalidades barrocas e as sonoridades brutais ou serenas, parecem reforçar.

Com "Chère Amour" as III Jornadas de Arte Contemporânea encerram a sua programação de dança da responsabilidade de Ana Cristina Vicente e com consultoria artística de António Pinto Ribeiro. Foram apresentados dois espectáculos, e ambos, curiosa, mas propositadamente, dançados só por homens. O primeiro foi "A Travessia Difícil", de Rui Nunes (um espectáculo sobre o qual já falámos nas páginas deste jornal). E se este é feito de uma emoção contida que depois explode em estilhaços, "Chère Amour" usa as ampliações dos movimentos do corpo para esculpir nos limites dos seus músculos, fibras e texturas toda a gama das emoções. Ou como me dizia António Pinto Ribeiro, usando a polaridade nietzscheana, "A Travessia Difícil" é uma coreografia dionisíaca, enquanto "Chère Amour" é uma obra apolínea.

Em Lisboa, na Caixa Geral de Depósitos, Bebe Miller apresentou "Tiny Sisters In the Enormous Land", uma obra que alude a espaços de isolamento. Usando como metáfora a história das duas irmãs de ascendência índia que viveram numa região isolada de Gales, Bebe Miller parece querer falar dos processos de solidariedade grupal, activados pelos excluídos, pelas minorias, e da incorporação de mecanismos de defesa e sobrevivência face ao exterior. E se bem que a performance seja tecnicamente irrepreensível, a todos os níveis - corporal, vocal, musical, cénico e fílmico, - "Tiny Sisters In the Enormous Land" não nos chega a transportar para o seu universo. Aparentemente, o carácter redundante dos enunciados terá boicotado a activação de tensões e dinamismos coreográficos e dramatúrgicos.