João Lopes

O candeeiro é um cilindro de madeira com um cone de luz por cima. Um tronco de cone, sem vértice. Lá fora está frio. Para fazer uma fotografia do candeeiro será preciso fechar as cortinas e acender as luzes. Fechar as cortinas, sim, mas apagar todas as luzes, excepto a do candeeiro. Encontrar o enquadramento certo, deixar a louça do pequeno-almoço entrar na imagem. O cinzeiro com um cigarro a arder. Talvez não, talvez apenas um cigarro pousado numa das ranhuras como se ali tivesse ficado, esquecido a meio de um acto íntimo sem relatores.

Não tenho cigarros. Posso pedi-los, mas não quero falar. Posso ir lá baixo comprá-los. Mas o hotel é imenso. Seguir o labirinto dos corredores, pedir a colaboração de algum criado, falar com alguém. Não quero falar. Para já, Boston é apenas o espaço fechado deste quarto. A cidade tem um clima agreste, grita sob um frio cortante e ainda me sinto tonto da viagem de avião. Já não sei bem a que horas cheguei, de tal modo se acumularam atrasos e refrescos oferecidos para ocupar o tempo entre os avisos do pessoal do aeroporto. Pedimos a vossa compreensão. Sure, why not?

Não me mereces. Foi o que tu me disseste. Não sei porquê, ao fazer as malas, ainda com o eco das tuas palavras a ressoar algures em mim, decidi tirar a meia dúzia de CD com que costumo viajar. Não sei porquê, mas intriga-me que o gesto tenha permanecido em mim como uma resposta Ó tua acusação. Um CD ficou na mala, por distracção. Ficou e viajou até Boston: as canções de Grieg, por Anne Sofie von Otter, com um quadro de Munch na capa. Embora os textos de apresentação das músicas sejam quase sempre professorais e monótonos, recordei-me logo deste: a citação de uma carta de Grieg, considerando que a sua mulher foi, talvez, a única verdadeira intérprete das suas canções, logo depois o comentário, lembrando que Nina Grieg não possuía uma grande voz, mas criou um estilo recitativo próprio.

Porque é que não te mereço? Porque é preciso merecermo-nos para estarmos na mesma casa? Só quero olhar-te, cheirar-te, dormir contigo, ter a tua voz próxima da minha, a tua mão fechada sobre a almofada, um ligeiro tremor na respiração do sono. Não tenho que merecer isso. Apagar este candeeiro, abrir aquelas cortinas e lá fora ser Verão. Não a neve a cobrir Beacon Hill, não a escuridão das águas do Charles River, mas todos os castanhos da cidade a brilhar e estalar de calor.

A música de Grieg é castanha. Ou então é a voz de Anne Sofie von Otter que traz consigo algo da espessura da madeira, de uma cor ancestral que se cola Ó pele como uma pele. Como se, desde o tempo de Adão, ninguém tivesse reparado que cada corpo se liga ao mundo, e dele se separa, através de uma pele. Como se fosse a primeira vez que alguém assistisse ao milagre de uma pele a tocar outra pele. Apagar o candeeiro, acendê-lo outra vez, colocar a asa da chávena num alinhamento discreto com a asa do pequeno bule. Ela foi a única verdadeira intérprete das minhas canções.

Apanhei o avião ao cair da noite, saí do avião ao cair de outra noite. Trago um CD perdido e a fotografia-amuleto do comboio dos irmãos Lumière. Foi a única imagem pura do cinema, disse-te um dia. "Não, von Otter, my dear", corrigiste-me: "É a única imagem feliz do cinema. Tudo o resto são resgates". De quê? Dos mortos que transportamos na alma (e punhas um grão trágico na voz). Mostravas-me as mãos abertas quando o dizias, as palmas viradas para mim e os dedos muito afastados uns dos outros. Um pouco de Grieg, talvez. Como é que se diz alma em norueguês?

Vou apagar o candeeiro, deixar o comboio passar, esquecer o ruído deste avião, voltar a abrir as cortinas. Boston já não vai lá estar. É uma praia, um mar calmo, um pouco frio, eu sei, mas o Verão atrai sempre um pouco de frio. Vou escrever-te. Estou já a escrever-te. Volta para mim no próximo Verão. Fuma este cigarro comigo.