Aldoar, o bairro onde morreu Lisete "Não houve dinheiro, não viveu" No bairro de Aldoar, no Porto, é normal as mulheres terem que "deitar os filhos abaixo", por isso, para os vizinhos de Lisete a sua história só tem de estranho o facto de ela ter morrido. Num cenário de miséria e de degradação as mulheres só perguntam: "mais filhos para quê"?

Durante a tarde de ontem, enquanto os deputados se afadigavam a levantar a mão para aprovar o voto de pesar pela morte de Lisete Moreira - falecida no dia 8 de Março, devido a um aborto clandestino - a vida continuava pachorrenta no bairro de Aldoar, no Porto. Ninguém parecia muito interessado em saber qual a decisão da Assembleia da República sobre aquela antiga moradora, talvez a figura do bairro mais falada de sempre.

Mas afinal por que é que estariam interessados? Para a maior parte deles a morte de Lisete não passa de uma baixa normal, entre mortos e vencidos de uma guerra há muito perdida, num bairro degradado. "Não houve dinheiro, não viveu", sentenciam. As leis da vida são dramaticamente simples.

"Infelizmente é quase uma morte natural", afirma também o padre Lino Maia, da paróquia de Aldoar. O padre conhecia bem a vida de Lisete e as condições do bairro: "Para mim é o pior bairro do Porto, um verdadeiro gueto", defende o padre. Ele, que é naturalmente contra a prática do aborto, sucumbe perante a realidade e diz "compreender" e sentir-se "incapaz de levantar o dedo acusador" a Lisete.

Não é fácil de digerir uma vida amarga como a dela. Separada do marido, Lisete passou a viver com outro homem. Tinha três filhos, o mais velho dos quais, com 16 anos, é toxicodependente. Segundo contam os vizinhos, um dia o homem com quem vivia fartou-se e disse que ou o filho mudava de hábitos ou mudavam todos dali para fora. E foi o que aconteceu, Lisete foi viver para o barraco número 13, um dos muitos que enxameiam o bairro.

Para ganhar dinheiro fazia-se de costureira, de empregada doméstica, ou ia até à lota de Matosinhos carregar caixas de peixe, mas sempre com dificuldade. "Muitas vezes os patrões quando sabem que são do bairro de Aldoar negam-lhes emprego", afirma o padre Maia. A Lisete, o dinheiro nunca chegou. Mesmo para comprar os comprimidos na farmácia para fazer o aborto, Lisete teve que pedir dinheiro emprestado. Pediu dez contos e, em menos de quinze dias, teve que pagar treze a quem lhe emprestou. Depois introduziu as pastilhas na vagina e foi aquilo que se sabe.

"Crianças para quê? Para a miséria?"

"Eu também já deitei um filho abaixo, como é que podia ser de outra forma, com dois já a dormir na minha cama?" , afirma Maria Elisa, moradora de Aldoar. Para a maior parte delas, só o facto de Lisete ter morrido é estranho nesta história. Num pequeno grupo de seis ou sete mulheres sentadas ao sol, há logo três ou quatro que admitem ter "deitado o filho abaixo".

"O Estado defende que Portugal é um país com poucas crianças, mas crianças para quê? Para a miséria?", questiona Olívia Pereira, que no grupo defende a liberalização do aborto. "Estamos condenados por ser daqui", sentencia uma vizinha. Há muito que o bairro atingiu a sobrelotação. As famílias relutantes em se separar foram-se espalhando pelas barracas que se erguem à sombra dos blocos, multiplicando as histórias de promiscuidade. "Se a gente quer fazer amor tem que ser à hora do galo cantar, para ver se os nossos filhos não ouvem".

"Se a gente tivesse casas, estas coisas não aconteciam" desabafa uma vizinha que defende que "a Lisete já foi muito castigada" e que agora deviam "deixá-la em paz e sossego". A mesma opinião tem a família, algo revoltada por ter visto o seu nome difundido por televisões e jornais. "Mas agora que já está, ao menos que sirva de exemplo", espera a cunhada de Lisete.

Ao contrário de algumas vizinhas, que defendiam que as mulheres que ajudaram Lisete a fazer o aborto deveriam ser castigadas, a irmã dela, Manuela Moreira, sustenta que ela "tinha 37 anos, sabia muito bem o que havia de fazer de si". "Se os centros de saúde não tivessem deixado de dar a pílula aos pobres, talvez nada disto tivesse acontecido" conclui.