Os (in)conformistas
A crise global do capitalismo não pode ser ocultada. Económica e financeira, é também crise social, cultural, moral, de autoridade, crise das instituições. A igreja católica oficial, o Vaticano, como grande corpo organizado intimamente ligado ao capital reflecte, necessariamente essa crise. E a sua hierarquia encara o que vai acontecendo no mundo - miséria, alienação, exploração, abusos do poder, escândalos e conflitos - conformando-se com o que vê e fechando os olhos quando terríveis crimes impavidamente são cometidos. É uma atitude conformista, adequada às regras das grandes operações de lucro em que, de resto, o Vaticano profundamente se envolve.
Mas a igreja católica oficial, o Vaticano, também se afirma liderar todo o mundo cristão, onde exploradores e explorados habitam lado a lado. Por isso mesmo, a hierarquia religiosa sente-se obrigada - por força da sua afirmação espiritual - a propor, sem muito insistir diga-se de passagem, grandes projectos alternativos ao sistema capitalista no seu estádio superior. Aquilo que designa como uma nova ordem. Nesse sentido, a cúria apresenta-se aos homens como inconformista e arauto de projectos de acção tendentes a fixar, no mundo moderno, regras e comportamentos cristãos. Simultaneamente conformista (quanto ao sistema capitalista) e inconformista (face aos métodos do sistema) o governo da igreja mergulha em profundas contradições.
Há dias, por exemplo, o arcebispo John Foley esteve em Lisboa. Foley é influente membro da cúria e presidente do Conselho Pontifício das Comunicações Sociais. Personalidade altamente responsável. Nas entrevistas, às perguntas respondeu: «A comunicação social pode ajudar ou obstruir o trabalho da Igreja... através da Internet e outras técnicas modernas, tentamos estar em contacto com todos... Penso que o maior problema de comunicação da igreja com o exterior diz respeito às distracções... Como é que a voz da religião e as palavras de Cristo vão ser ouvidas?... Para a Igreja é a Verdade que nos torna livres!». Não explicou, o arcebispo, que a verdade é a igreja que a proclama. A Verdade é o Dogma mais os interesses próprios do Vaticano. E, quando questionado no sentido das diferentes imoralidades da programação da TV, John Foley replicou: «Muitas coisas são necessárias... Para protegerem os cidadãos, os governos têm o direito de exigir certos limites... Em relação ao Big Bro ther, um programa tão em moda na Europa, nunca o vi, só li a seu respeito relatórios, comentários... É um faz-de-conta...».
Fuga para a frente, fuga para trás, John Foley não se pronuncia. Evade-se. Entretanto, noutras entrevistas quase que simultaneamente publicadas, o Patriarca de Lisboa abordou a problemática da comunicação católica.
«Já quase nos fomos convencendo de que não é possível conquistar o poder que a comunicação social representa».
Patente contradição. Leigo católico e comentador, o insuspeito António Barreto declararia logo a seguir: «Ou a Igreja se adapta para não morrer ou se adapta e pode morrer, porque pode perder a sua essência...».
Vítor Melícias a quem, absurdamente, se poderia chamar ideólogo tecnocrata, falava entretanto para dentro do mundo político português, em linguagem bíblica: «Um reino dividido contra si mesmo é um reino destruído... é dividir para reinar... sempre fui e sou defensor da alternância, mas não considero que a esta se deva recorrer pela simples sofreguidão de alternativas que, porventura, ainda não existem ou não estão ainda maduras!». Palavras que permitem adivinhar ideias de futura ocupação do poder político pelo poder puramente eclesiástico.
Os jogos verbais conformismo/inconformismno ultrapassam, evidentemente, as áreas religiosas. Vamos, mesmo, encontrá-los em terrenos que nos são familiares. Tal como acontece com a cúria católica, também estratos responsáveis de movimentos laicos evidenciam os danos que resultam das suas dúvidas pessoais. Procuram, para formularem as suas próprias convicções, uma nova linguagem, um sistema alternativo, um novo impulso. E não percebem, ofuscados pelo brilho da sua imagem virtual, que se afastam irremediavelmente da única força que os sustenta e justifica: as bases das suas igrejas, dos seus movimentos, dos seus partidos de massas.
«Avante!» Nº 1416 - 18.Janeiro.2001
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