Rio d'oiro

M iguel Torga foi, talvez, o escritor português que mais utilizou a palavra doiro, referida ao rio Douro.

Na sua terra natal, São Martinho de Anta, assim como noutras zonas de transição da montanha para o vale duriense, é costume dizer-se Alendoiro referindo as terras ribeirinhas do distrito de Viseu. As próprias cantigas das rogas, a caminho das quintas do Noval ou Cavadinha e outras, entoavam assim: Vou ao Doiro à vindima, /E regresso vindimado/ Com o fato domingueiro,/ Pelo mosto arruinado!

É um privilégio de poucos transmontanos o residir em aldeia serrana e possuir vinhas, olivais ou hortas na zona duriense. Os renovos aparecem mais cedo: ainda as uvas mal pintam em São Martinho, já no Pinhão existem cachos bem tintos, para enfeitarem o andor de Santa Maria Madalena (fins de Julho), na procissão da festa de Roalde.

A riqueza do Doiro não é só a do vinho fino, também a do azeite, dos figos, dos pêssegos (famosas as orelhas de pêssego!), das laranjas e, principalmente, dos produtos hortícolas temporãos. As favas, as ervilhas e as batatas novas, vindas da quinta de Provesende, até matavam os desejos das grávidas!

Mas, sem dúvida, é o azeite e o vinho generoso, considerados, desde longa data, como os melhores do mundo, que dão fama ao tal rio d'oiro. Vai sendo tempo de escrever nas garrafas do vinho do Porto: "produzido no Alto Doiro". Se a Cidade Invicta contribuiu e contribui para o seu comércio e internacionalização do vinho, não devemos esquecer Vila Nova de Gaia, onde estadia e envelhece! 0 precioso liquido, quando é exportado, é mais de Gaia do que do Porto!

Qual a origem do nome ibérico de rio d'oiro?

Deve ser, com certeza, devido às pepitas de oiro transportadas. Os que dizem: "é devido à cor barrenta (tipo oiro), pela erosão na bacia hidrográfica", alguma razão têm, pois com o transporte dos sedimentos viriam as pepitas. A minha defesa para o uso do nome rio d'oiro foi reforçada devida à activação recente (propalada a todos os ventos) das minas de ouro de Sobreira-Recarei.

A minha formação geológica e telúrica rejubilam com o conhecimento da importante noticia! No entanto, faço um acto de contrição pela inactividade das minas de Jales e Penedono, entre outras, espalhadas na rede hidrográfica. Se há um rio de prata o nosso foi e será o rio d'oiro!

Hoje, a sua riqueza é outra. Começou quando os famosos vinhos da região foram tratados para aguentarem os caminhos mundiais, sem envinagrar.

Vinho tratado (designação muito utilizada no Alto Douro) porquê?

Aumentando-lhe o grau alcoólico, por adição de aguardente vínica, controlando a doçura, do muito doce ao seco (só álcool), e fazendo-o estagiar na origem ou em Vila Nova de Gaia, para envelhecimento.

Quando se aplica o dito: "Deus fez o Mundo e o duriense fez o Douro", não podemos esquecer o trabalho hercúleo dos residentes na montanha, que desciam e descem aos terrenos do rio para arrotear, cavar e vindimar!

Hoje, olhando a região demarcada do Barão de Forrester e de D. Antónia Ferreira (Ferreirinha), abrimos a boca de espanto, quando ouvimos:

- Vi um helicóptero, na quinta da Barreira, a deitar o sulfato nas vinhas!

Ao sentir bater de contente o coração de oitenta anos do Manuel Fernandes, ao mostrar-me as novas plantações da Cabreira, temos, por força, de recordar a sua odisseia, quando plantou as primeiras vinhas à pá e ferro, trabalhando de sol a sol!

- Um dia, contou ele: "Atravessei o rio num barquito ainda de noite, para vir para aqui trabalhar. Enquanto subia a encosta, monte acima a corta-mato, quase tropecei num texugo! Larguei a merenda e tentei matá-lo com a moca do guarda-chuva. No final, fiquei sem guarda-chuva, sem merenda e com garrafa do vinho partida!"

A peripécia, passada no tempo da febre do volfrâmio, ainda o fez sorrir e acrescentar:

"O texugo safou-se da panela, e eu cá ando!..."

Gil Monteiro

Director do Colégio de Castro