Da manipulação dos afectos

Passando pela Rotunda da Boavista, a montra dum estabelecimento de retalho de um conhecido banqueiro de Deus oferece-nos a simpática imagem de um rechonchudo bebé de fralda, a olhar o relógio de pulso: "Entre... um minuto bem gasto".

Esta utilização de crianças na publicidade, sistemática e crescente, dá que pensar – o que terá um nado-vivo de poucos meses com o convite de um Banco a clientes apressados, procurando cativá-los pela rapidez dos serviços que presta?

Qual será a mensagem subliminar, já que, liminarmente, a criança, nascida para a vida, é ainda nascitura para a esfera cinzenta dos depósitos, créditos e poupanças?

Não pretendo responder a esta interrogação, que me inquieta, e perturba, e em si mesmo me indigna, porque este recurso continuado a crianças, nos mais diversos pacotes publicitários, configura uma fria instrumentalização, abusiva e abusada, a que não devemos ficar indiferentes.

Mas antes reflectir um pouco sobre esta escalada de envolvimento da infância e dos afectos mais puros e espontâneos que a rodeiam no sabido mundo dos adultos, dos negócios, do consumo, de compras e vendas, onde nada se dá, tudo tem um preço.

A publicidade visual, aquela que sugere mais do que diz, que a memória comprovadamente mais retém, que se dirige mais aos sentidos, às emoções, do que à razão, utiliza, cada vez mais frequentemente, crianças para promover a comercialização de produtos.

Mesmo os que não lhes sejam directamente destinados, nuns casos violando no limite, noutros contornando, as normas legais aplicáveis.

Atente-se, entre muitos outros sinais visíveis num universo de milhões de pessoas, naqueles anúncios – todos nos lembramos certamente – que mostram uma sala de espectáculo com recém-nascidos sorridentes, galreando ainda, que publicitam uma marca de automóveis, ou aquele em que garotos já vestidos de jovens executivos, espertos, agressivos e de sucesso, publicita uma marca qualquer.

Muitos outros vão surgindo com os mesmos ingredientes: jovens a imitar adultos, crianças felizes num quadro familiar sorridente com uma qualquer marca em fundo.

Os "tios Olavos" desta época discorrem imenso sobre estes assuntos. Mas a publicidade não reflecte apenas tendências, induz opções e modela comportamentos. Não se limita a aconselhar marcas, contém, por vezes, uma diáfana mensagem ideológica.

Entretanto, os hipermercados já inventaram o mini-carrinho de compras, onde a filharada coloca as embalagens mais coloridas, dando origem, por vezes, a acaloradas discussões com os mais velhos, entre lágrimas e ralhetes.

Tenho visto ranchos de pequenada, vindos dos jardins de infância, a invadir centros comerciais e hipermercados, diligentemente guiados por educadoras, que entendem assim, além de passar o tempo, contribuir para a formação da personalidade da miudagem, uma espécie de aulas práticas de educação para o consumo.

Algumas escolas vão criando as suas parcerias com grandes superfícies, em curiosos protocolos "mutuamente vantajosos", sobretudo para a criação de futuros consumidores, com o patrocínio do Ministério e a que o novo regime de autonomia dará o impulso que falta.

No meio de tudo isto – vi há dias um miúdo de um bairro degradado a exibir, radiante, o cartão VIP que tinha arranjado, sabe-se lá como, num salão de jogos do "continente" dos seus sonhos – há também um discurso contra a febre consumista, sensatas prevenções contra o sobreaquecimento do crédito ao consumo e, surpreendentemente, vindas de quem vêm, algumas alusões à teologia do mercado. Boas palavras a que, infelizmente, não têm correspondido acções.

O capitalismo neoliberal, que inspira o pensamento ainda dominante neste final de século, impõe na lógica da formação do lucro, sem olhar a meios, sem reparar nas pessoas concretas, a mercantilização totalitária da actividade humana.

Tudo vai sendo possível, mesmo a despudorada manipulação dos afectos.

Talvez seja tempo de um debate sério sobre esta questão.— Jorge Sarabando

«Avante!» Nº 1279 - 4.Junho.98