Um dos fenómenos mais curiosos, e mais estranhos, do cenário televisivo português da actualidade é o da fidelização. A fidelização consiste na ligação preferencial de públicos a determinada emissora, independentemente da adesão consciente desses públicos à matriz programativa da antena preferida, se é que há matriz na antena em causa. Trata-se, pois, trocando a coisa por miúdos, de uma espécie de "clubismo" de antena. Ora, como é sabido, o "clubismo" representa um protagonismo social com uma forte componente de irracional, e o irracional, por definição, é muito difícil de explicar. Mas não é impossível.

Antes de tudo, diga-se que a fidelização ultrapassou por completo o chamado "efeito "zapping"", ou seja, a tentação de, utilizando desenvoltamente o controlo ou comando à distância, fazer diluir a personalidade individual das emissoras, transformando cada telespectador num seleccionador atento e permanente do conjunto dos "menus" que o seu aparelho lhe disponibiliza. Os que esperavam que o "zapping" iria destruir o espírito de antena, diminuindo ou até anulando a lógica programática das estações, enganaram-se rotundamente. O resultado deste jogo foi claramente: fidelização, 1-"zapping", 0.

A postura da fidelização pressupõe dois elementos comportamentais por parte do espectador fiel: a habituação e a recusa de mudança. A habituação molda a relação oferta-procura através de um registo redutor que constrange a procura dentro de um funil de escolha que, de facto, nega ou rejeita o mercado. Ninguém é capaz de defender que todos os programas da emissora A são melhores do que todos os programas das emissoras B e C. Mas muitos espectadores pautam a sua intervenção no palco TV por fecharem os olhos e os ouvidos a numerosos programas, de que decerto gostariam, apenas porque são transmitidos numa antena que não é "sua".

E aqui chegamos à outra vertente apontada à fidelização, a causa de mudança. A fidelização é uma aliada evidente da inércia, das costas viradas à diversidade, à comparação. Identificar a "televisão" com um determinado pacote de oferta que nos é proporcionado sequencialmente por uma mesma estação, sem qualquer abertura a alternativas que, no entanto, são de acesso facílimo e têm uma qualidade em geral aceitável, equivale, e estou a usar a palavra num sentido etimológico tanto como judicativo, equivale insofismavelmente a um preconceito. Como sabemos, a recusa da mudança não é mais do que um preconceito, o preconceito por excelência: a ideia preconcebida (não comprovada) de que certas escolhas são as melhores, sem as havermos testado realmente em correlação com escolhas diferentes e concorrentes.

Filha da rotina e do conformismo, a fidelização é, no fim de contas, empobrecedora. O "fiel" televisivo tem o seu mundo limitado, circunscrito. Autopriva-se sem razão do usufruto da grande diversidade da oferta televisiva que cada dia se dilata e enriquece. No fundo, todo o "clubismo", a começar pelo original, o do futebol, se insere numa filosofia de recusa, de olhos semicerrados, que só vêem numa direcção. Só que o "clubismo" do futebol emerge num habitat de disputa por excelência, onde ganhar e perder são decorrências incontornáveis da essência do movimento que ele próprio gerou, "o clubismo" como filho natural. Se não era inevitável no futebol, o "clubismo" assume aí, pelo menos, uma justificação que quase desculpa os seus excessos, ou no mínimo os explica. Já não assim na televisão.

Na televisão, a luta, se a há, é entre os empresários das emissoras, não entre os telespectadores. A fidelização, o "clubismo" em televisão, nada tem que ver com os verdadeiros interesses dos consumidores. Estes deveriam saber usufruir o que de melhor lhes é apresentado pelos vários pólos de oferta, sem se entregarem a nenhum de maneira incondicional e fechada. Ao terem conseguido instilar a fidelização de antena nos consumidores, os empresários lograram transferir para o público (falo, claro, de alguns empresários e de algum público) convicções e atitudes que servem não os interesses do público, e sim os dos empresários. A isto, em português, chama-se alienação.

Sebastião Lima Rego