%Andréia Azevedo Soares

"E quem sabe, então / O Rio será / Alguma cidade submersa / Os escafandristas virão / explorar sua casa / Seu quarto, suas coisas / Sua alma, desvãos // Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização"

O caudal do Tejo sobe e deixa Lisboa submersa. As colinas da cidade transformam-se então em territórios insulares e as profundezas das águas ganham contornos oníricos: "vistamos o escafandro, meus irmãos, e desçamos à baixa pombalina, seguindo o percurso das escadinhas, passando por todos os afogados, os móveis de madeira subiram ao tecto das casas, e todos os lápis atingiram a superfície encontrando o caminho para cima através das chaminés e então, através do peso do escafandro, encontramos uma casa diferente, toda feita de guloseimas".

É um "outro mundo" que temos sob os nossos pés quando lemos "As Sete Ilhas de Lisboa", de Miguel Castro Caldas. Nesse lugar habita Daniel, um rapaz que não trabalha nem estuda, que caminha sem cessar pelas artérias da cidade para curar um alegado problema de saúde. Ali mora ainda um desconforto, uma defasagem de quem não se sente em conformidade com o tempo e a terra em que nasceu. Este é o segundo livro de Miguel Castro Caldas, um lisboeta de 32 anos, que se estreou com "Queres Crescer e Depois não Cabes na Banheira".

O personagem Daniel parece estar desenquadrado do universo que o rodeia. E a única brecha para evitar a dor do descompasso é, sem dúvida, manter-se em permanente movimento. "Prefiro curar a minha doença, passeando. Enquanto passear, a dinâmica do corpo mantém-se junta, se paro, separa-se tudo, esta cidade, este mundo", escreve Castro Caldas. Por outras palavras, corpo e cidade alimentam-se do mesmo ânimo. É preciso nunca permanecer para que o lugar exista e faça sentido. Um sentido próprio, uma forma muito íntima de viver o ambiente urbano. Mas que corre o risco de se tornar inércia, a mesma de que padece o barqueiro escravo de travessias eternas.

Um idoso reformado conta a Daniel uma história: "Quando me aproximava da margem desconhecida vinham-me as dúvidas todas outra vez. Tinha saudades do pai, tinha saudades da mãe, ia deixar tudo o que eu conhecia. E tornava a pagar a viagem de regresso. (...) o resultado disso foi ficar condenado a continuar a atravessar o rio de um lado para o outro sem deixar o barco porque não tinha dinheiro para pagar". A narrativa do barqueiro incomoda Daniel porque, de alguma forma, ela sintetiza a atitude de não contrariar a corrente, apenas aceitar a força das vagas sem tomar decisões.

Assim foi com Lígia, figura feminina inacessível nos tempos de escola: "o vento empurrou as velas do teu barco sem mim, Lígia, e eu fiquei na margem a arrancar os cabelos". Quando Daniel a reencontra anos mais tarde, quando ela já havia casado com um polícia, ele percebe que Lígia não seria tão inatingível quanto isso. Mas mesmo assim não assume o leme para dar rumo ao encontro, preferindo deixar a história de um beijo para futuras investigações subaquáticas. O amor de Daniel não tem pressa, "pode esperar em silêncio", como diz a canção de Chico Buarque. Porque o mundo que Daniel prefere habitar é uma cidade invisível, revelada ao leitor através de uma primorosa torrente de ideias da personagem. Nesse lugar recôndito não há vez para créditos bonificados, casamentos ou formulários da Segurança Social: "se as gravatas tivessem sido subtraídas às relações entre os homens, diz Daniel, talvez eu fosse feliz".

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