Numa cabana pobre, perto do mar e da Rua da Felicidade, que não dá aos seus moradores o que o nome promete, foi nesse território enlameado e molhado de suor e lágrimas, onde ecoa alguma revolta abafada, que Julião da Silva, filho de pescadores, cresceu e viu seus pais serem obrigados a fugir à perseguição da Guarda Republicana e da Pide, só por terem ousado encabeçar não propriamente uma greve, já que esses homens não tinham patrões, mas uma acção reivindicativa junto do presidente da Câmara, pedindo socorros e alimentos, em nome da gente do mar.
Julião orgulha-se desse gesto dos seus progenitores (Maria do Céu, a mãe, há-de tornar-se mais tarde combatente das trevas) e, por sua vez, durante o serviço militar, nos anos cinquenta, recusa-se a seguir para a Índia como expedicionário, assim afrontando todos os castigos e ameaças que logo lhe caem em cima.
Um dos oficiais que nessa ocasião o interrogam e lhe traçam o destino é precisamente o marido da sua deslumbrante namoradinha da adolescência, que subiu de estatuto, graças ao encanto e à ambição.
Só por um bambúrrio de sorte, Julião, nesse transe, encontra um primeiro sargento, com ideias democráticas, que, a fim de o salvar do embarque para Goa, o interna, já com guia de marcha, no Hospital Militar, onde é submetido a uma operação-fantasma.
A naturalidade, o vigor, a crueza deste romance de Alberto da Silva, A Rua da Felicidade, em que por vezes o humor alterna com a violência da expressão e dos próprios eventos, criando uma certa descompressão narrativa, permitir-nos-iam falarmos de obra neo-realista tardia. Mas a verdade é que o neo-realismo cumpriu o seu ciclo histórico e artístico, e às novas experiências de ficção social e interventiva terão de caber hoje outros rótulos, se teimarmos em as agrupar numa corrente.
A Rua da Felicidade parece-nos situar-se muito perto do vivido, pelo menos parcialmente, tal a sua veemência, simulada ou não. A sua arquitectura, quase linear nas sequências da primeira metade da narração, complexifica?se depois, alargando-se a outras áreas de vida e de actividades, retomando pontas da diegese atrás deixadas, como a das grandes famílias e empresas que começam a dominar os bancos e outros ramos de negócio e da grande indústria.
Estamos perante uma realidade múltipla, que, espremida pelo autor, acaba por abrir-se e sangrar, deixando à vista as pústulas de uma sociedade atrasada e cruel, que relegava para uma miséria bem comportada e reverente o mundo do trabalho simbolizado no título irónico, A Rua da Felicidade. O narrador omnisciente mostra-nos novos rostos de Lisboa, a cidade da burocracia, onde se concentram o poder e a riqueza, e, com um intervalo de vinte anos, após alguns quadros muito fortes da campanha do general Humberto Delgado, leva-nos dos quartéis e dos bairros de mau passadio aos centros de decisão económica, às salas e escritórios onde se projecta a finança e se governam as empresas. Aí se nos deparam alguns dos rebeldes do outrora juvenil, agora adaptados ao regime, que entretanto se modernizou à superfície. E é um estendal de desvergonha, de servilismo, de cupidez.
Mundo a preto e branco? Não exactamente. Alberto da Silva, que é um excelente jornalista com vários pseudónimos, especialmente Manoel de Lenastre, divulgador da história antiga e recente de Portugal e da Inglaterra, onde habita já há várias décadas, sabe dosear a paixão e a objectividade.
Julião desapareceu na noite da resistência, tem agora um nome de combate e cede no romance o palco de acção aos comparsas da comédia trágica que é o Portugal de então, os que se movem sobre as tapeçarias da lisonja, espezinhando os fracos, acumulando prebendas, honrarias, prosperidades.
Caricatura? Só o será para quem não tiver de perto assistido ao festim de glorificação da mediocridade, de desprezo por um pobre povo amansado, de irredutível oratória patrioteira que foram as ditaduras de Salazar e Caetano.
Alberto da Silva só pelo que nos traz de luz acerba sobre esse período da nossa história e mereceria já o nosso aplauso. Mas, além disso, o seu romance, é muito interessante e honestamente realista, mesmo no que tem de polémico, de combativo, de pessoal em sua vibrante sinceridade.
«Avante!» Nº 1418 - 1.Fevereiro.2001
A grandeza da memória de um povo
Resistência à globalização neoliberal (II)
Luta por um novo olimpismo
A Constituição, lembram-se?