Poderá o jornalismo ser uma forma de educação cívica? Parece que sim, a crer nas opiniões que dominaram ontem o debate nas Conferências do Convento da Arrábida. Mas estarão os "media" verdadeiramente conscientes desse seu poder e da descrença de que actualmente sofrem? Fica lançado o mote para a reflexão.
Num semana dedicada ao jornalismo como forma de conhecimento nas Conferências da Arrábida, ouviu-se dizer que sim senhor, o jornalismo até funciona como educação cívica. Mas mais do que directamente educador, o jornalismo pode também, e sobretudo, ser um valioso instrumento ao serviço dos cidadãos para participarem na vida pública. Esta foi, pelo menos, a posição defendida por Evelyne Bévort, do Centro de Estudos da Educação dos Media (CLEMI) do Ministério da Educação francês.
Só que, para poder fornecer esses ingredientes, o jornalista terá que ser, ele próprio, "um verdadeiro cidadão", como fez questão de lembrar Teresa Ambrósio, p residente do Conselho Nacional de Educação, porque é difícil falar de jornalismo sem falar dos jornalistas. E entende-se aqui cidadania como um resultado da vida em democracia e da própria educação cívica que cada um recebe. Ser cidadão, ser um participante cívico e activo na sociedade é ser capaz de se integrar numa comunidade sem, no entanto, nunca pôr de parte as especificidades individuais.
A propósito, Évelyne Bévort buscou em Robert Putman o pensamento segundo o qual "a base de uma democracia viva está no envolvimento dos cidadãos nos assuntos públicos" e "a comunidade cívica está associada" a esse envolvimento e ao reconhecimento da igualdade política e de valores como a solidariedade, a confiança e a tolerância. E os "media" podem justamente ser uma importante fonte de matéria-prima para a vida nessa comunidade cívica, mesmo que, para Putman, esse papel seja mais claro na Imprensa escrita: quanto maior o índice de leitura dos jornais, acredita, maior a presença em sociedade de cidadãos implicados.
A questão reside essencialmente em saber se o actual panorama mediático e todas as suas implicações, tanto em termos de produção, como de difusão, funciona verdadeiramente como agente no processo de formação social dos indivíduos. A pesquisadora francesa optou por pôr sobre a mesa as actuais críticas "virulentas" ao jornalismo, quer pelos seus critérios de selecção e apresentação da informação - dirigidos pela busca do lucro e, portanto, do sensacionalismo, "gangrenando" os esquemas de produção cultural, como acusou Pierre Bourdieu -, quer pela incitação à violência social, constituindo um "perigo para a democracia", como considerou Karl Popper em relação à televisão.
Já Jay Rosen preferiu denunciar na crise da mediação (mediação que o realizador João Mário Grilo até chegou a acusar de não existir) a prevalência do "cinismo", resultante do privilégio dado a informações com pouca ou nenhuma influência sobre a vida em comunid ade, talvez fruto de interesses políticos e económicos. É que, se o cidadão consome mais jornais quanto mais implicado se sente nos assuntos públicos, também é verdade que deixa de o fazer quando perde a confiança nos actores políticos e sociais insistentemente chamados a intervir via "media".
As soluções, sugeriu Évelyne Bévort, passam pela re-aproximação dos cidadãos aos assuntos públicos. Para tal, e depois de questionar qual o real papel do jornalista, por que não mudar a "agenda" dos jornalistas e passar a trabalhar mais sobre aquilo que está na ordem do dia dos cidadãos? Por que não evitar o excesso de dados e dar informações mais correctamente tratadas de forma a evitar a sub-informação e o "enjoo" das pessoas? Porque, assegura, "o mais importante para o cidadão não é certamente saber tudo, mas sim estar melhor preparado a compreender o que se passa".